No prólogo de seu livro em que analisa o teatro pós-dramático, Hans-Thies Lehmann (2007) refere-se às diferenças entre as práticas culturais tecnológicas e midiáticas, que se tornam cada vez mais “imateriais”, e o teatro, definido por uma “materialidade da comunicação”. O autor inclui nessa última todos os recursos, pessoas e equipamentos necessários à execução do espetáculo ao vivo e presencial. Nessa direção, o teatro subsiste numa situação mais frágil por não circular e ser passível de comercialização no mesmo patamar de seus concorrentes. Pode-se perguntar, a partir desse quadro, o que caberia ao teatro no mundo contemporâneo?
Quando fiz a prova de seleção para o mestrado – em artes, no campo do teatro – a questão colocada, na hora e sem possibilidades de estudo ou planejamento prévio, solicitava que eu escrevesse sobre as possíveis conexões entre Stanislávski e minha pesquisa.
Voltado para o Teatro do Corpo, Teatro Físico e práticas espaciais, não me parecia, à primeira vista, ter alguma coisa a ver tudo isso com Stanislávski. Se fosse Eugenio Barba ou Grotowski, ou ainda Artaud, certamente seria mais fácil para mim, pois eu os lia continuamente. Porém, esses caminhos e interesses me perpassavam via Arte da Performance e, por estranho que pareça, naquele momento, ali, ao redigir o texto, me veio uma conexão entre esta e o mestre russo.
Seria possível performance sem pelo menos uma testemunha? E não seria esse possível algo radicalmente distinto da realização artística singular que é a cena? Pois a própria definição do que viria a ser uma ação performativa -e digamos por extensão, cênica – não exigiria a presença compartilhada de uma testemunha, ao vivo, em tempo real e em um território?
Tal é o que nos lembraria Jorge Dubatti, ao falar do que ele chama de convívio cênico. Erika Fischer-Lichte por sua vez igualmente frisa essa característica, definindo a performance cênica como um processo de retroalimentação contínua (feedback) entre artistas e espectadores. Ou seja, estamos diante de uma arte que é por definição encontro presencial em um cruzamento temporal e territorial – no aqui e agora. Algo que ocorre no entre de uma relação e não em.
Por tudo isso, não havendo pelo menos a presença de uma testemunha, tal realização seria outra coisa que não uma arte da cena. Faria sentido, nesse caso, atuar sem ao menos uma testemunha? Se admitirmos a hipótese, que encontro seria esse que se caracterizaria por um não encontro com um observador ou testemunha?
Propõe-se, aqui, pensar o exercício de uma poética ao modo da ação – a performance cênica – sem testemunhas físicas e presenciais. E que não se negue, por princípio, as formulações de Jorge Dubatti e Erika Fisher-Lichte acima explicitadas. Que essa poética continue a ser de características presenciais – ao menos uma presença: a do ator/atriz. Daí que, justo nessa perspectiva, possa haver um encontro de outra natureza, não necessariamente com um parceiro atual, mas com um parceiro virtual, como mostrarei mais adiante. E acrescento: que poderia inclusive fazer parte de um treino em criação – melhor, diria, de um cultivo dessa arte de ator/atriz – de performadores e performadoras.
A performatividade como traço de uma poética – de um chamar das forças a si – como uma vez me sugeriu a pesquisadora cubana radicada no México, Ileana Diéguez – pode tanto conectar o ritual quanto a cena, sem que as duas instâncias sejam confundidas.
Pois que nos encontramos numa região em que a conexão corpo e linguagem se estabelece tanto no caso do ritual quanto no da cena – entendida esta de um modo expandido – com todas as variações possíveis entre algo que acontece diante dos outros, algo que acontece sem a presença desses outros e o que acontece, finalmente, no encontro com esses outros como espectadores. Ou seja, a cena como uma variação do ritual em grau e em natureza.
Numa próxima postagem, tratarei de examinar o possível de uma performance sem espectadores, que essa conexão corpo/linguagem em que um eu já é um outro pode abrir. Por agora, faço de um texto de Alexandre Nodari no Twitter um intercessor de experimentação cênico-performativa. O que ele diz, num texto tão breve quanto luminoso:
Por Mariana de Lima e Muniz [1] e Luiz Carlos Garrocho [2] –
Resumo: O artigo aborda a performance urbana a partir de uma pesquisa que se fez na implicação mútua entre o campo teórico e o da experimentação artística, na qual o lugar e o convívio são tomados como práticas espaciais, participando como tais no engendramento da tessitura cênica. Nessa perspectiva, mais do que inserir um objeto ou ação artística no ambiente urbano, tratou-se antes de conceber os possíveis de uma zona temporária de interstícios, na qual se dão as interpenetrações entre as presenças e as texturas da performance e do real. Isso significa que a performance urbana traça territorialidades em meio a outras territorialidades, realiza ocupações junto a outras ocupações. Os espaços da cidade surgem, de um lado, à luz das práticas que os consubstanciam; de outro, na alteridade radical que eles carregam enquanto espaços encontrados: tanto em relação aos espaços previamente destinados à apresentação artística, quanto no sentido de que trazem consigo uma realidade própria e, por essas vias, por possibilitarem brechas de contraposição e de inversão dos usos e sentidos hegemônicos (*).
(*) Publicado originalmente na Revista Cabaret Filosófico n. 3 – Abril de 2016 – o qual encontra-se aqui na íntegra, com algumas pequenas modificações.
Dos mapeamentos conceituais enquanto genealogia das linhas de força
Tomar a performance urbana como prática espacial é dizer, antes de tudo, que ela difere de uma apresentação artística nos chamados espaços públicos da cidade. Em que os habitantes/transeuntes desses lugares deveriam, necessariamente, interromper as práticas espaciais em que estão envolvidos, para assistir a uma cena. Ao contrário, o equacionamento expressivo passa a levar em conta, seja por emergência e/ou escolha do campo de ação, aquilo que se coloca em curso no movimento constitutivo da espacialidade. Esse é o princípio axial de uma performance que se processa não tanto no espaço, mas principalmente com o espaço.
Faço algumas anotações sobre o espetáculo Outro em si, da Cia Sesc de Dança (Belo Horizonte, 2017), que foi dirigido por Fernanda Lippi e André Semenza, ambos do Zikzira Teatro Físico, (BH/Londres). Sendo que Fernanda Lippi assina ainda a concepção e coreografia e André a trilha sonora, que se inspiraram no livro Estrangeiros para nós mesmos, de Julia Kristeva. Deste trabalho resultou o filme de média metragem, Memória silenciosa, dirigido pelos dois artistas.
Um primeiro aspecto que me chama a atenção, refere-se à linha de leitmotiv (motivo que retorna) que me parece ser estruturante do processo coreográfico-temático de Fernanda Lippi: a paisagem desterrada, os seres que buscam incessantemente e quase inutilmente respirar numa atmosfera sufocante e, por fim, um amor para sempre perdido. E de um ponto de vista mais técnico, incluiria ainda a via dos impulsos corporais. André Semenza, como codiretor, cineasta e desenhista de sonoridades, joga com esse universo de obsessões com o qual partilha.
Imagem: acervo da Anti Status Quo Companhia de Dança
De carne e concreto – uma instalação coreográfica, da Cia Anti-Status Quo, de Luciana Lara, de Brasília – no Festival do Teatro Brasileiro (apresentações realizadas em Belo Horizonte, 07 e 08 de Agosto de 2017). Uma cena que é do acontecimento dos corpos desmedidos, numa paisagem que virou lixo. Um trabalho em que a experimentação é pautada e levada adiante. Em que o espaço dos espectadores e dos artistas não tem separação, onde se os corpos se entreolham, se misturam e interagem nos diversos momentos.
As luzes se apagam e escutamos, no escuro, a gravação da voz de uma mulher. Começa a cena de Vaga Carne, com Grace Passô. Que logo aparecerá sob um foco de luz no rosto, com ela de óculos escuros. Depois veremos uma bateria musical ao lado, num palco praticamente nu, apenas com as rotundas em volta. A plateia é configurada na forma de esporão, com a relação frontal, uma à esquerda e o outra à direita. Estamos bem próximos da atriz, aliás, dentro do palco do teatro à italiana.
A voz fala de um ser que descreve as coisas e das coisas e outros seres que invade, transita e habita por um tempo. Quem invade? Seria um vírus? Um algo sem nome. Um efeito da linguagem – o inominável, para lembrar Beckett. que vai nomeando as sensações, passando de uma para outra numa velocidade entre o demorar-se um pouco e o saltar logo adiante. De operar cortes e de dobrar/desdobrar mundos internos, superfícies e percepções de estados de coisas.
Logo em seguida, esse inominável da linguagem irá invadir e descrever a carne de uma mulher. Daí para diante seguiremos juntos, artista, espectadores e mundos visitados, arrastados por uma sinfonia agônica e minimalista de voz e corpo, por quase 50 minutos. Um tempo que não vemos passar. Digo que é um dos trabalhos mais instigantes de Grace Passô – em que vejo uma travessia. Dele falo em três lances breves: o do dispositivo cênico, o da técnica/poética ao modo de uma travessia e o do acontecimento e sua política.
Cena da peça “Artists should Croak”, de Tadeusz Kantor. Premiere em Junho de 1985 – Nuremberg
“Kierkegaard e Nietzsche estão entre os que trazem à Filosofia novos meios de expressão. A propósito deles, fala-se de bom grado em ultrapassagem da Filosofia. Ora, o que está em questão em toda a sua obra é o movimento. O que eles criticam em Hegel é a permanência no falso movimento, no movimento lógico abstrato, isto é, na ‘mediação’. Eles querem colocar a metafísica em movimento, em atividade, querem fazê-la passar ao ato e aos atos imediatos. Não lhes basta, pois, propor uma nova representação do movimento; a representação já é mediação.”
Migrações de Tennessee é um tributo de Eid Ribeiro ao grande dramaturgo que escreveu, entre outras peças, Um Bonde Chamado Desejo e À Margem da Vida.
Ele expõe na personagem de Tennessee Willians em cena (Cristiano Peixoto), um pouco da história e dos motivos que são recorrentes ao autor. Porém, mais do que isso, Eid Ribeiro mostra também os traços que marcam sua trajetória de encenador – e também de dramaturgo que é. Mesmo que não sejam tão evidentes, pois que entrelaçados estão a outros intercessores e influências.
Os detalhes na construção dos seres ficcionais são de uma preciosidade ímpar. Quase um minimalismo dramático – por onde as personas escapam pelas frestas, a serem apanhadas logo em seguida no patético do acontecimento (o convidado para o jantar, quando acovardado, se revela num átimo, batendo o pente na parede e quase olhando para trás).
Eid Ribeiro entretece o seu fazer, nas dobras do acontecimento, através do que ele sempre chamou de nuances – que nós entendemos por detalhes. Que a arte é detalhe dentro de detalhe. Nuance de nuances.