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Performance sem testemunha?

Leandro Silva em experimento performativo

O problema

Seria possível performance sem pelo menos uma testemunha? E não seria esse possível algo radicalmente distinto da realização artística singular que é a cena? Pois a própria definição do que viria a ser uma ação performativa -e digamos por extensão, cênica – não exigiria a presença compartilhada de uma testemunha, ao vivo, em tempo real e em um território?

Tal é o que nos lembraria Jorge Dubatti, ao falar do que ele chama de convívio cênico. Erika Fischer-Lichte por sua vez igualmente frisa essa característica, definindo a performance cênica como um processo de retroalimentação contínua (feedback) entre artistas e espectadores. Ou seja, estamos diante de uma arte que é por definição encontro presencial em um cruzamento temporal e territorial – no aqui e agora. Algo que ocorre no entre de uma relação e não em.

Por tudo isso, não havendo pelo menos a presença de uma testemunha, tal realização seria outra coisa que não uma arte da cena. Faria sentido, nesse caso, atuar sem ao menos uma testemunha? Se admitirmos a hipótese, que encontro seria esse que se caracterizaria por um não encontro com um observador ou testemunha?

Propõe-se, aqui, pensar o exercício de uma poética ao modo da ação – a performance cênica – sem testemunhas físicas e presenciais. E que não se negue, por princípio, as formulações de Jorge Dubatti e Erika Fisher-Lichte acima explicitadas. Que essa poética continue a ser de características presenciais – ao menos uma presença: a do ator/atriz. Daí que, justo nessa perspectiva, possa haver um encontro de outra natureza, não necessariamente com um parceiro atual, mas com um parceiro virtual, como mostrarei mais adiante. E acrescento: que poderia inclusive fazer parte de um treino em criação – melhor, diria, de um cultivo dessa arte de ator/atriz – de performadores e performadoras.

Para começar, é necessário desembaraçar um pouco os termos cena e performance – assim como a noção de teatro. Destaco, para tanto, as linhas conceituais de teatralidade e de performatividade. Linhas não segmentadas, flutuantes. Para dizer com Deleuze e Guattari que os conceitos possuem vizinhanças, fronteiras que são variações de si, e sub-conjuntos que se comunicam com os subconjuntos de outros conceitos. Por essa via, conceitos não se constituem como peças delimitadas, que encerram uma identidade (A=A que não B) – operando antes pela inclusão do terceiro excluído.

Portanto, se uma linha já é um entrelaçamento de outras linhas, as duas linhas – teatralidade e performatividade – se distinguem entre si, mas possuem flutuações a ponto de também se entrelaçarem formando outras linhas.

Teatralidade

Tomemos a linha de teatralidade como sendo aquela relativa a dois possíveis, seguindo a pesquisadora canadense Josette Féral: a) como uma proposição do ator/atriz (assim como de outros agentes que estão cooperando no acionamento desse dispositivo); b) como uma proposição do espectador na medida em que ele faz um enquadramento de uma determinada situação (mesmo que a pessoa/objeto de enquadramento não se proponha a tal). Na primeira colocação, o ator/atriz faz o convite para a testemunha – direta ou indiretamente, fornecendo os signos de que está operando uma realização de teatro. Já no segundo caso, o observador é quem transforma uma ou mais pessoas – ou se quiser, objetos – em uma situação teatral. Neste último caso, para dar um exemplo, você veria uma ocorrência no seu cotidiano e faria um enquadramento – aquilo se torna, para você, um acontecimento teatral.

Teatralidade, portanto, é um exercício em que, através do convívio presencial entre atuantes e observadores, seja por iniciativa dos primeiro e/ou dos últimos, realiza-se o ato de enquadrar ou compor. Seja pela força da corporalidade, da imagem, da sonoridade etc. De modo que a linha de teatralidade não quer dizer o mesmo que Teatro Dramático (personas dramáticas) – sendo este somente uma possibilidade dessa perspectiva construída.

Leandro Silva Acácio, parceiro dessa inquirição, como exponho a seguir, lembrou-me que a teatralidade – a partir de suas leituras de Féral – exigiria a cumplicidade daquele que atua e do observador ou da ação. Nesse caso, como dizer que o observador, ao realizar um enquadramento de um evento em sua cotidianidade, possa estar vivenciando a linha de teatralidade se aquele ou aquela que é observado, possivelmente e numa primeira asserção, não compartilha a princípio desse ato?

John Cage, músico experimental que se tornou um intercessor do novo teatro dos anos de 1960 e da Performance Arte, entendia a música como um ato público – como teatro. Questionado, ele continuava a provocação: sente no banco de uma praça e faça um enquadramento – pronto, você tem teatro. Era assim que ele escutava/assistia à execução de uma obra musical por uma orquestra, por exemplo. Ele se interessava e via como música aos movimentos sutis e cuidadosos dos músicos ao passar uma página da partitura escrita, assim como os gestos do maestro… Por isso, bailarinos e bailarinas experimentais (Judson Dance Theater) se interessaram pelas suas oficinas e performances: a ação/movimento era música, em vez de funcionar como mero fundo daquela e vice-versa. E a música deixava de ser algo prévio, já criada de antemão pelo compositor e executada, então, por um músico – passa a ser algo que se dá no acontecimento presente.

Voltemos ao tema, portanto, da teatralidade. Se eu apenas enquadro uma cena para mim, não há convívio cênico e tampouco o feedback entre fazedores e testemunhas, como dizem respectivamente Dubatti e Fischer-Lichte – noções diferentes para falar do acontecimento teatral.

Josette Féral fala de dois aspectos da noção de teatralidade, que merecem destaque: a) a teatralidade gera uma fenda no cotidiano, produzindo um efeito de linguagem – a ficção; b) a teatralidade não é um produto (uma coisa empírica – como a realização teatral), mas um processo dinâmico que cria um espaço para o outro – um outro do outro, diria. De tal modo que, por um lado, uma realização teatral qualquer não é a condição da teatralidade, antes encontrando nela a condição de existência. E por outro lado, o teatro é o lugar – o dado empírico – de experimentação e viabilização da teatralidade. Ou, diria, de sua atualização.

Portanto, como Leandro Silva Acácio chama a atenção, não basta que o observador possa enquadrar um objeto ou evento para que ocorra a teatralidade. Para isso, é necessário que haja uma cumplicidade em jogo.

Permita-me um exemplo cotidiano que me ocorreu. Numa manhã, deparo-me com uma mulher com um belo vestido vermelho, sentada no meio-fio de uma rua não muito movimentada no bairro onde estava morando, fumando um cigarro. Permaneço em estado de quietude e contemplação, fazendo como propõe John Cage, um enquadramento. Aquilo é para mim uma cena.

Ocorre que não há nem convívio cênico e tampouco o feedback ou processo de retroalimentação contínuo, entre aquele que observa e o que é observado. Tampouco a cumplicidade de que fala Féral, ou seja, esse espaço outro em que, como diz, “observador e observado são colocados face a face”.

Aquela mulher permanece imersa no seu mundo. Ela não participa – diria que não entra num processo de subjetivação através de uma linha de teatralidade. Não há uma teatralidade de mão única. Poderia até dizer, como Leandro Silva Acácio me chama a atenção, que aquilo me evoca algo de teatral, mas não que seria uma linha de força da teatralidade, justo por não haver a condição necessária de uma cumplicidade ente eu a pessoa observada, em que ambos pudéssemos aceder a um espaço outro que não o da cotidianidade (eu um passante qualquer, ela uma pessoa aguardando algo ou alguém ou simplesmente parando para fumar).

Entretanto, penso que não de se pode excluir de antemão o possível de uma linha de teatralidade nesse caso. Sim, não temos aqui as condições que poderiam caracterizar a teatralidade como processo dinâmico. Quero antes dizer que a teatralidade se mostra, aqui, como uma linha de potência.

O que seria essa linha de potência? Primeiro: aquela que é gerada numa quietude ativa em que a ação do outro não deve ou não necessita ser perturbada por um convívio intruso, forçado. Ou seja, há uma contemplação que busca preservar a integridade do objeto percebido. Segundo: que essa integridade do objeto percebido – não perturbá-lo com a presença intrusa do observador/testemunha – seja igualmente a potência de uma performatividade do observador que se vê incluso no acontecimento, apesar de não anunciado e, portanto, não estar em relação face a face.

Um terceiro fator se apresenta ainda: a potência de um ponto de partida para uma realização performativa e, portanto, teatral, na qual, agora sim, os dois – testemunha inicial e pessoa inserida em seu próprio mundo – poderiam jogar. Nesse último caso, implicaria necessariamente que o observador atue/performe, a fim de fornecer para o outro as pistas ou o convite para que a pessoa observada possa ingressar na superfície do acontecimento. Isto é, na linguagem, que Féral entende como uma fenda no cotidiano, o espaço outro que permite o emergir da ficção. Sem o qual haveria apenas a pragmática do viver: a mulher, por estar nesse universo e não num acontecimento teatral, sem quaisquer indícios dele, poderia simplesmente acreditar que há uma pessoa invadindo seu espaço.

Alguém ainda poderia questionar se o observador, permanecendo quieto e sem se anunciar, já não estaria de algum modo produzindo uma intrusão sutil, uma apropriação do outro através do olhar, um ato voyer?

Para retomar Cage, acredito que o músico experimental propõe outra coisa diverso de um ato voyer, quando diz: sente num banco de uma praça, faça um enquadramento e você tem teatro. Pois que ele postulava nesse caso um observador atuante – que não tem de necessariamente atuar, mas cuja presença está implícita, potencialmente no espaço da execução visual/sonora, podendo a qualquer momento emergir nesse campo de percepção.

No caso citado, quando o observador, no seu caminhar cotidiano, depara-se com uma mulher de vermelho, sentada no meio fio e fumando um cigarro, o que se buscou fazer foi não ser invasivo. Uma escuta atenta e silenciosa, para que o acontecimento siga o seu curso. Um modo de se posicionar (uma certa distância do objeto) para que a imagem perdure por si.

De fato, esse é um acontecimento somente para mim observador, porque não está sendo compartilhado, não há cumplicidade. Algo que pode estar gerando uma afecção em mim, capaz de me modificar e constituir, portanto, uma linha de potência. E uma potência é o que torna um corpo capaz de algo não dado de antemão – posso querer sair correndo de alegria, posso cantar baixinho, posso me sentar e chorar, posso escrever um poema… Nesses casos e em outros possíveis, o observador é também um performador em potencial. Pois ele não aceita nem instrumentalizar o outro e, tampouco, a permanecer ileso ao acontecimento. Ao contrário, ele se percebe como parte da situação, recusando-se a se conformar em fazer do outro uma mera imagem para si.

O observador se permite ser atravessado. Trata-se, portanto, do possível de uma participação silenciosa – ele se vê como parte do ambiente sonoro, da paisagem ou da ação que contempla. E o que virá daí não sabemos e não podemos prever. Desde que não nos assenhoremos do acontecimento como um voyer que instrumentaliza o outro para o seu prazer. Lembraria ainda os passeios do flaneur de Baudelaire – um ato performativo. Ou seja, quando se entrelaçam teatralidade e performatividade.

Portanto, a linha de teatralidade comportaria variações de grau e de natureza, flutuando ela também em modalidades performativas. Caso em que o observador e observado não entram em convívio, e por isso não e vice-versa não se gera uma linha de teatralidade, mas que se torna passível de constituir uma potência performativa. E que ainda pode ser uma passagem para a teatralidade.

Performatividade

Vimos, desse modo, que a linha de performatividade acaba por se insinuar ou mesmo se colocar em meio a um possível para a linha da teatralidade. Como entender o que viria a ser uma linha de performatividade? Ileana Dièguez, uma pesquisadora cubana radicada no México, me disse certa vez que é aquela em que o fazedor chama a si as forças. A performatividade tem a ver igualmente com a Arte da Performance, não se limitando a ela – na verdade transpassando-a.

Diverso desse chamado das forças a si, seria para Ileana Dièguez a Arte do Happening, na qual o propositor da ação pode, se assim desejar, ausentar-se da ação, deixando que os participantes se envolvam com a sua proposição, tornando-se os agentes. Neste último caso, a atenção recai sobre o jogo dos participantes com a situação deflagrada – ao exemplo de uma instalação – sendo que o performador deixa de ser o veículo pelo qual se processa o acontecimento.

Um experimento

Propus a Leandro Silva Acácio, um experimento. Selecionei um grupo de imagens que havia feito por ocasião de uma pesquisa que realizávamos, quando levantávamos materiais para uma performance. Esta ainda não foi realizada, aguardando disponibilidades outras – o que espero para breve, se conseguirmos. Perguntei se ele poderia reproduzir/atualizar aquelas imagens, em qualquer local em que não houvesse a presença de outras pessoas.

Leandro realizou o experimento em sua casa, dentro de seu quarto. E fez o seguinte relato que segue.

1 – Realizei um experimento em meu quarto. Usei como suporte a estante, o chão, a cama;
2 – Reproduzindo as ações. A primeira coisa que se passou comigo foi a ampliação do sentido da audição e, também, meu corpo ativou uma qualidade de tônus diferente. Percebi principalmente o abdome, quando inclinei para frente;
3 – Lembro de ter trabalhado na rua alguns subtextos fundamentais para acessar alguns estados: um cão ferido, a busca por lugares onde eu poderia me esconder – para esse último subtexto, corria de um lado para outro, o que não consegui reproduzir em meu quarto
;
4 – Levantar o braço foi um gesto interessante de reproduzir. Na rua, lembro de ter acessado uma sensação de rendição. A sensação no quarto veio quase pura novamente, na mesma intensidade.

Leandro lembra as condições em que se deu o primeiro experimento, que realizamos num passeio de uma larga avenida em Belo Horizonte, na qual havia pouco movimento de transeuntes, mas com algum fluxo intenso de carros. Não se tratava de uma apresentação, mas o espaço e tudo o que nele atuava era para ser considerado, sendo que não se buscava uma relação performativa direta – como nas performances urbanas. Estávamos ali, não ignorando as outras presenças, mas igualmente não atuando para os outros. Não era uma performance site-specific ou uma intervenção urbana.

Naquela tarde, tinha em mente que nosso trabalho estava voltado para criar um espaço de treinamento e experimentação explorando os atravessamentos das ações corporais, os subtextos propostos como estímulos de movimento e, também, o fluxo cotidiano da avenida Barbacena. Pensando agora, talvez a ideia de performar estava muito atrelada a ideia de ensaiar. O Garrocho conduzia o treinamento de forma ativa: dava comandos em voz alta, enquanto eu executava, sugeria possíveis mudanças, pedia para repetir alguma ação ou sequência de ações. Não tínhamos espectador no sentido tradicional do termo – alguém que tivesse sido convidado a assistir algo – , mas acredito que testemunhas e observadores tínhamos o tempo todo: os transeuntes, os motoristas e passageiros etc. Estávamos sendo tão bem observados que, em determinado momento, uma viatura da Polícia Militar parou no meio da avenida e guardas vieram nos abordar perguntando se estava tudo bem, já que ele havia me visto deitado no chão do canteiro central. Então, o trabalho, mesmo tendo sido em caráter de experimentação, foi bastante afetado pelos habitantes transitórios daquele local.

Na situação seguinte, Leandro procura restaurar aquele comportamento – pra lembrar – porém, sem qualquer testemunha presente. Deve-se lembrar que eu, como parceiro de criação e diretor de cena, já era de antemão uma testemunha. Havia, portanto no experimento na rua, um espaço e tempo de ações atravessadas pelo ambiente. Nesse experimento, somente o performador e seu quarto.

Perguntei a Leandro se esta nova ação, sem qualquer presença de testemunhas, faria para ele algum sentido.

Faz sentido performar no quarto sem testemunha. Nesse caso específico, o feito teve a motivação de dizer sobre, ou seja, tentar acessar algo vivido por meio de fotografias. Teve uma conotação de estudo, de observação, tais como outros estudos que costumo realizar no quarto: ler, decorar um texto, projetar ideias. Se existe performance sem testemunha? Intuo que sim! Existe performance sem testemunha. Por que não? Daí posso estabelecer cumplicidades com Grotowski que, em certa fase de sua pesquisa desprendeu de público para suas experimentações cênicas ou, até mesmo com Richard Schechner para quem performar pode ser “just living”.

Eu é um outro

Jes est un autre – Arthur Rimbaud. Entretanto, não se trata de ser o outro que difere de si, mas o outro como variação de si. Não o que difere de mim, mas o si como diferença – a experiência de si já é um outro.

A performatividade é, por natureza, a instalação desse outro. Novarrina, o dramaturgo, dizia que um ator/atriz nunca dança sozinho. Não estamos ainda falando de seres ficcionais – que são tantas outras formas poéticas dessa fórmula eu é um outro. O acontecimento performativo é uma alteridade – uma variação de si. Portanto, estando ou não diante de uma testemunha, já se está como outro.

Trata-se de pensar em primeira instância que os seres ficcionais não se restringem às personas dramáticas – tal como o concebeu o teatro dramático. Ou mesmo as personagens épicas. Um ser ficcional é uma forma-sentimento em variação contínua. Porém, não posso nesta postagem discutir ou desdobrar isso.

Observe-se que o ensaio é, num sentido mais banal ou pouco potente, o lugar de preparação para o encontro. Num sentido mais potente já é o encontro: entre os parceiros presentes (corpos e objetos) e parceiros invocados (memória). Pois que desde já o ato de preparar-se é um meio de auto-investigação. Esse espaço outro que a cena pós-dramática e performativa inventou, reivindicando autonomia. Lembraria ainda e Grotowski e a Arte como Veículo – por onde já não há uma ação mostrada para um espectador. Podem haver testemunhas, mas a performance não é dirigida a elas, não é confeccionada, por assim dizer, no processo de convívio cênico -não se conduz como atenção do performador na cena. Ao contrário, atenção em si. Isso para dar somente um exemplo.

Voltemos à linha de teatralidade – aquela em que se faz o convite para que um observador entre. Com Tadeuzs Kantor podemos pensa-la como ruptura que se dá no ritual coletivo. Alguém rompe com sua comunidade, dá um passo adiante e se expõe. Ou como se diz na psicanálise lacaniana: passar ao ato. Diria que nesse caso o ator/atriz expõe a si como um outro de si. O encontro com suas variantes de dispositivo cênico/performativo que instala e sobre os quais se atualiza.

Performance e ficção como outro de si

Há um relato impressionante – pelo que ele conta do embate de uma artista com esse outro de si que é a ficção. Clarice Lispector estava em seus últimos momentos, sofrendo de um câncer nos ovários. Estava no quarto do hospital com sua companheira de vida, quando em meio a uma hemorragia abundante ela se levanta da cama e quer sair. A enfermeira é acionada e a detém, forçando a se deitar novamente. O que ela faz, vencida pela força que já não tinha mais, mas sem deixar de protestar: – Você acabou de estragar minha personagem! E desiste.

Clarice Lispector passou ao ato. E nos deixa, nesse embate, uma pista sobre o que é a natureza performativa do encontro – com ou sem a presença de testemunhas. No caso, havia testemunhas. Mas ela não se dirigia àquelas pessoas – sua companhia ou a enfermeira que deve ter entrado por chamado – e tampouco fazia daquela situação seu motivo. Sua urgência me parece ser outra: ela se esvaía em sangue. E não se levantou para pedir socorro. Porém, pode-se inferir, ela só performou de fato – ou teria instaurado uma poética ao modo da ação – quando a enfermeira. De qualquer jeito, na fala “você acabou de destruir minha personagem” há uma busca de si como um outro.

Encerro sem totalizar essas anotações com a lembrança de meu pai. Estava com mais de 90 anos, e eu o acompanhava no hospital para uns exames. Foi-lhe retirado sangue do dedo para exame de glicose. Aguardávamos os resultados numa imensa enfermaria, com várias camas vazias, somente eu ele. Num momento, já impaciente com a demora, meu pai dizia olhou para o espaço vazio e disse: – Quero ir embora daqui. Achei curioso aquilo, de falar para uma “plateia” vazia. Foi aí que eu lhe perguntei, um pouco provocativamente, para quem ele estava falando. Pois que a mim diretamente ele não havia se dirigido. Meu pai mais irritado, varrendo com os olhos, num quase gesto, o espaço amplo de nada: – Ora, para quem quiser ouvir!

Referências

  • Acácio, Leandro Silva. O teatro performativo: a construção de um operador conceitual. Belo Horizonte: UFMG, Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, 2011.
  • Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. O que é filosofia. Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.
  • DUBATTI, Jorge. Filosofia del teatro I: convívio, experiência, subjetividad. Buenos Aires: Atuel, 2007.
  • FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo performativo. Traducción: Diana González Martín y David Martínez Perucha. Introducción: Óscar Cornago. Madrid: Abada Editores, 2011.
  • Moser, Benjamin. Clarice. São Paulo: Cosac & Naif, 2011.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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