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Materialidade cênica como linguagem

A Última Palavra é a Penúltima – Imagem de Guilherme Bonfanti

A colocação da questão: materialidade e encenação

No prólogo de seu livro em que analisa o teatro pós-dramático, Hans-Thies Lehmann (2007) refere-se às diferenças entre as práticas culturais tecnológicas e midiáticas, que se tornam cada vez mais “imateriais”, e o teatro, definido por uma “materialidade da comunicação”. O autor inclui nessa última todos os recursos, pessoas e equipamentos necessários à execução do espetáculo ao vivo e presencial. Nessa direção, o teatro subsiste numa situação mais frágil por não circular e ser passível de comercialização no mesmo patamar de seus concorrentes. Pode-se perguntar, a partir desse quadro, o que caberia ao teatro no mundo contemporâneo?

Para que a questão seja devidamente colocada, é necessário entender que não é o fator de tecnologia agregada (vídeo, telepresença etc.) que poderia tornar a arte da encenação contemporânea às outras realidades da cultura. De um jeito ou de outro, o teatro permanece sendo uma arte em que público e criadores compartilham a experiência presencial. E é somente desse patamar de coisas que podemos apreender algo sobre o sentido do teatro hoje.

É desse deslocamento em relação às outras práticas culturais, como se algo lhe faltasse (a reprodutibilidade técnica, presencial ou remota, por exemplo), que Lehmann apresenta a força do teatro contemporâneo: a encenação surgida a partir dos anos 70 do século XX aprofundaria e radicalizaria essa dimensão material, que é afinal ontológica, fazendo-a “conteúdo e tema da representação”. Tal seria justamente o que vai definir em primeira mão o teatro pós-dramático, sendo precisamente o horizonte que nos permite falar de um pathos de criação cujas premissas e problemas podem ser compreendidos em termos de uma materialidade cênica que se faz linguagem.

E é nesse sentido que podemos tomar a cena pós-dramática (LEHMANN), performativa (FERAL, 2008), formalista (KIRBY,1987) e híbrida como aquela que faz da sua materialidade expressão e linguagem. Mais do que uma característica comum a todo e qualquer teatro, estamos diante de uma transformação da poética cênica. Alguns elementos característicos dessa nova cena podem ser alinhados: a) a fragmentação da fábula e, em alguns casos, completa ausência; b) as poéticas advindas ou juntas ao plano actante da encenação, para seguir com Matteo Bonfitto. (2006). ele fala do sactante estado (pulsões, traços da corporalidade etc.) e do actante texto (textos que não apontam para uma forma dramática) no lugar do actante máscara (personagem de matiz psicológico e história pessoal ou tipo); c) a presença co-atuante, porém não coadjuvante, de elementos tais como luz, paisagem sonora, imagens, arquitetura, distâncias e outros mais, dispostos sem hierarquias; d) a característica working in progress da criação cênica contemporânea (COHEN, 1999); e) a intromissão do real na ficção e o compartilhamento do tempo real em oposição ao tempo indireto etc. e, f) o borramento das fronteiras entre as linguagens artísticas e a sua contaminação mútua.

Tais elementos constituem exemplos de um investimento na “materialidade da comunicação”. Ao mesmo tempo, são eles que nos direcionam para uma definição descentrada e expandida da cena.

Expansão e descentramento

Arlindo Machado (2007) mostra que os estudiosos dos fenômenos artísticos se dedicaram, durante certo tempo, à tarefa de encontrar o que seria o elemento essencial ou irredutível de cada linguagem, ou campo artístico. Havia uma necessidade de compreender os âmbitos conceituais, procedimentos, técnicas, aspectos econômicos, modalidades de recepção e públicos dos respectivos meios. Surgiram, assim, teorizações baseadas em “círculos” delimitadores, constituídos de “núcleos duros”, com suas áreas periféricas, nas quais possíveis intersecções poderiam ocorrer. Ocorre que as realidades artísticas e culturais apontavam para áreas de experiência que se mostravam, no mínimo, fronteiriças, quando não, superpostas. Entre os exemplos, Machado cita o caso de um fotógrafo-pianista que compunha fotografias como peças musicais, transpondo escalas de tons musicais para as escalas dos tons cinza da fotografia. Tais experiências fronteiriças passaram a exigir novas abordagens, que extrapolariam inevitavelmente os enfoques delimitadores. Porém, as análises não deixavam, ainda, de procurar a definição do “núcleo duro”, para depois assimilar as justaposições, reservadas para as áreas periféricas.

No entanto, outras práticas de pensamento se fazem exigir. Aparece, assim, a noção de “campo expandido” (MACHADO, 2007): são as passagens entre os meios que se tornam exercício de criação e objeto de estudo. E nesse aspecto, a abordagem da materialidade cênica não foge a todo esse contexto, do qual participam em maior ou menor grau as diversas experiências de arte contemporânea.

Se as passagens ou os entremeios tornam-se fenômenos de importância teórica e prática, cabe entender por onde passaria a materialidade cênica nesse processo. Grotowski (1976), na fase do Teatro Laboratório, define a experiência do teatro como algo que poderia descartar todos os elementos, tais como cenários, luzes, figurinos etc., à exceção do encontro entre pelo menos um ator e um espectador. Não penso que essa definição seja uma demarcação de um “núcleo duro”. Pelo contrário, ela nos coloca diante de um fenômeno de outra natureza, na qual há algo de imediato: o evento como um ato de compartilhamento de uma duração. O que somente pode se dar através de duas consciências que se observam mutuamente e a partir do convite realizado por uma das partes, no caso, o ator ou performador. Uma experiência direta, no sentido apresentado por Bergson (DELEUZE, 1999).

Poderíamos nos perguntar se esse plano de um ato poético presencial, compartilhado como uma duração, não poderia ser modificado na definição de sua natureza pelas tecnologias de telepresença. Renato Cohen (2009) chegou a postular um pós-teatro, assim entendido porque operaria a desconstrução do “axioma do teatro”, que seria na sua visão a constelação “texto-audiência-público”. Trata-se também aqui de uma cena expandida, que alteraria

“as noções de presença, corpo, espaço, tempo, textualidade, pela inserção da simultaneidade, da velocidade e que – ao mesmo tempo— é plena de dramaticidade ao figurar o acontecimento, o evenément, em escala social e subjetiva.” (COHEN, 2009)

Ocorre nesse caso uma expansão da noção de evento presencial e compartilhado, que passa a incluir conexões com públicos e/ou criadores não-presenciais, mas que interagem com a cena. Os fenômenos citados por Cohen, como a telepresença, podem ser mais bem compreendidos não de modo classificatório, mas sim em termos de uma taxonomia da criação. Ou seja, de uma variação contínua do topos cênico, no qual se dão as passagens entremeios.

Desse modo, o ato de compartilhar uma duração não se modificaria simplesmente, no sentido que lhe é intrínseco, com a entrada de paisagens produzidas tecnologicamente. Desde que não deixasse de se remeter a um encontro no qual as conexões pressionam os corpos – ou se fazem por eles por eles pressionadas -em estado de criação e recepção ao vivo. E uma duração, seguindo a leitura de Deleuze sobre Bergson, é a tendência de uma coisa, ou seja, a sua modificação.

Pensar a materialidade não tem nada a ver, desse modo, com uma possível “listagem de materiais”, seja de corpos, fisicalidades ou objetos dispostos no tempo-espaço, mas antes com a ideia de um fluxo operatório e expressivo, uma espécie de modulação material-afetiva, ou material-energética, que passaremos a analisar.

 Fluxo operatório e expressivo

Estamos decompondo a composição cênica em matéria e linguagem.  Necessário, contudo, esclarecer que não estamos falando de sistema linguístico. Ao tratar a materialidade cênica como linguagem, nós o fazemos somente por analogia. O objetivo é o de mostrar que possui capacidade expressiva, abertura e um grau elevado de elaboração (LEVY, 1998). Porém, avançaríamos ainda muito pouco e correríamos o risco de deixar tudo mal explicado, mesmo quando se adverte que não se trata de pensar a materialidade como suporte para uma significação. Utilizamos, portanto, o termo “linguagem” aproximativamente, realizando uma passagem para uma expressão nova, que não se faz mais por metáfora, mas por literalidade. Gilles Deleuze e Félix falam no volume 5 da obra Mil Platôs (1997) de uma matéria-fluxo, oferecendo-nos uma “ferramenta conceitual” de outra ordem. A partir de Husserl, os autores concebem uma materialidade que não pode ser separada das “passagens ao limite”, envolvendo distorções, modulações e mudanças de estado. E a partir de Simondon, um pensamento que, em vez de impor formas à matéria, caminha “na direção de traços materiais de expressão que constituem afetos.” (pg. 90-91). Estamos num fluxo operatório e expressivo: “fluxo de matéria-movimento, fluxo de matéria em variação contínua, portador de singularidades, e traços de expressão” (pg. 88). Esta “ferramenta conceitual” de Deleuze e Guattari permite-nos pensar a materialidade cênica numa modulação topológica de espaços, tempos, corpos, objetos, vocalizações, movimentos, sentidos e afecções.

Postulamos, então, um regime para a materialidade cênica que não se prende mais ao espectro da significação,mas que se realiza num fluxo operatório e expressivo: a modulação topológica de uma materialidade que se faz seguir (os veios da madeira, o filão das minas etc.) e cujas operações itinerantes (nômades) modificam os sentidos.

Deleuze e Guattari (1997) nos advertem, entretanto, sobre a tentação de fazer disso uma espécie de modelo, a ser aplicado a esse ou aquele caso: seria o mesmo que “arrancar as variáveis do seu estado de variação contínua, para delas extrair pontos fixos e relações constantes” (p. 91). Convidam-nos, antes, a conectar operação, materialidade e mudanças qualitativas.

Falta, agora, explicitar um pouco mais em que consistiria essa implicação da materialidade na criação artística, o que faremos a seguir.

Implicação e desimplicação

O filósofo José Gil (1996), que entre outras influências trabalha nas trilhas abertas por Gilles Deleuze, aborda o fenômeno da criação artística em termos de um contexto no qual atuam forças de implicação e desimplicação do mundo.

Estamos trabalhando, efetivamente, com forças. Mais uma vez, é preciso dizer que não recorremos à idéia de significação. E é nessa direção que José Gil nos mostra como as forças atuam no movimento realizado para nos exprimir, incluindo as resistências encontradas para tal. Isso ocorre porque a passagem à expressão (artística, conceitual etc.) envolve uma perturbação do modo como o mundo está organizado, num determinado e momentâneo estado de coisas.

A força de uma expressão encontra-se, desse modo, com as forças que lhe opõem. E nessa tensão se dá numa implicação das próprias forças do mundo nas forças que tentam configurar uma expressão. Quando me exprimo, estou implicado no mundo e o mundo se implica no meu ato expressivo. José Gil lembra-nos que todo ato de expressão é um “estou aqui”. E exemplifica:

Um homem tímido exprime a sua força com dificuldade e hesitação; e a maneira como se exprime exprime também todo o peso da força do mundo com que ele depara. Esse peso encontra-se na qualidade da expressão da força singular (impulso, velocidade, viscosidade etc.) que registra, porque o contém no seu interior, o estado das forças do mundo. (p. 279)

O sujeito individual, no contexto da sua cotidianidade, ignora o “estado das suas forças” (p.280). Estas lhe permanecem inconscientes. E é um grau de “potência” que irá estabelecer as forças singulares que irrompem expressivamente e as forças do mundo. Uma das respostas consiste, necessariamente, a em obter certa “estabilidade” diante do caos,  em realizar, portanto, uma operação de desimplicação. A operação consiste, então, em fugir das implicações, como se fosse possível agir de fora. José Gil lembra que a linguagem justamente constitui um dos elementos que nos permitem desimplicar das forças do mundo. Assim,

“a vida comum tece a sua estabilidade e a sua clareza através da modulação constante de duas distâncias, a que separa a força singular da implicação total, e que afasta da desimplicação absoluta.” (282)

Isso porque, se precisamos de desimplicar para viver, corremos o risco de nos alienarmos completamente. A arte, por sua vez, tanto desestabiliza o sistema que nos protege do caos, quanto cria outros modos de sair e entrar desse sistema.

Sair do sistema é sair do presente. Entretanto, isso exige que o presente fique à mercê de outras forças, já que as forças singulares o abandonaram. Estaríamos menos potentes diante das forças do mundo. A pergunta de José Gil: “como sair do presente?” (p.283). Em vez de uma alienação, há um movimento inverso, no qual a força singular se escamoteia ante as forças do mundo, investindo antes na própria presentificação do presente. Este é invadido por regiões que, do ponto de vista de uma estabilidade, estariam de fora. Em termos de consciência corporal, José Gil nos mostra que ascende a esta uma abertura sem precedentes: “estou em toda a parte ao mesmo tempo no meu corpo” (282). Trata-se de uma “desimplicação implicada” (285), na qual a arte realiza uma retomada das forças do mundo, daquilo que podemos chamar de uma existência sensível.

A materialidade cênica é um modo de implicação radical na operação de desimplicação: Ela volta sobre o sistema o que no teatro da significação foi deixado de fora. O quê, precisamente? Faço minhas as palavras de José Gil:

“o presente vacila, deixa-se invadir por outras dimensões do tempo, trechos inteiros da presença do presente (…) desmoronar-se-ão em proveito de outros ritmos temporais…” (283).

Isso porque o “teatro da significação” não pode deixar-se tomar pela materialidade, sob o risco de não concluir o fechamento do sistema dramático. Por isso, a questão não se reduz a produzir uma fábula por meios materiais. Mais do que isso, insistimos, envolve o ato de fazer pesar sobre o sentido do discurso da encenação as forças da “materialidade como linguagem”.

Passemos à tarefa de exemplificar alguns traços dos procedimentos de criação que envolvem a materialidade cênica. Entretanto, essa tentativa não deve ser entendida como uma aplicação de conceitos e noções dos pensadores até aqui apresentados ao campo da realização cênica. As linhas da filosofia e as linhas da arte correm a-paralelas. Podem apresentar convergências inesperadas, confluências imprevisíveis e ressonâncias entre si. Não podemos dizer como isso vai ser e nem sob que condições. Apenas arriscamo-nos no exercício de buscar as mútuas provocações.

Materialidade da cena: diversidade expressiva

O “discurso” da materialidade cênica envolve uma diversidade de criações. Não podemos escolher uma obra “exemplar” e, nem tampouco, como foi dito antes, aplicar um modelo de análise estrutural. Buscamos, antes, correr o risco de percorrer experiências singulares, literalmente seguindo seu fluxo material e expressivo.

Lúcia Romano (2005), por exemplo, conecta a noção de uma materialidade com a noção de corpo manifesto, nas vertentes do Teatro Físico. De fato, sem querer diminuir o amplo espectro da ação material da cena, devemos reconhecer essa dimensão de fisicalidade associada à corporalidade numa corrente do teatro contemporâneo. Aqui também o corpo arrasta consigo seus “vestígios de sentido”, colocando em cena as implicações de seus nexos e contextos de vida. Não estamos falando de uma existência particular, ou da particularidade de uma vida a ser representada.  O surgimento do Teatro Físico teve como força, para um grupo como o DV-8, por exemplo, a recusa da abstração corporal da dança contemporânea de um lado, e a necessidade de implicar a cena com as afecções dos corpos.

Outras criações cênicas perseguem a materialidade, em outras direções, inclusive num tensionamento entre texto dramático e texto da encenação. No espetáculo Ensaio Hamlet[1] o encenador Enrique Diaz não monta apenas um texto teatral (da literatura dramática), procurando traduzir para a cena o que ocorre no campo da significação. Se esta última exerce uma pressão sobre o conjunto material da criação, esta mesma, antes de ficar oculta sobre a armação do espetáculo, é exposta em toda sua dinâmica processual. Tais forças são expostas na arena. Nessa perspectiva, aquilo que fez parte do processo de criação, como as aberturas estranhas à linearidade da significação, a fim de aumentar a captura do sentido e a apropriação do conjunto de criadores sobre o “material da encenação”, passa a fazer parte do resultado. Assistimos a uma série de intentos para estabelecer uma conexão que, entretanto, permanece aberta, incompleta, pois sempre passível de mundos implicados. Tomemos os atores de Ensaio Hamlet logo na recepção do público. Eles já se inserem na tendência de uma duração: não representam, não significam uma entrada num código ficcional, mas se expõem na corporeidade implicada no presente. Eles circulam no palco esporão (três platéias, uma frontal e duas ladeadas), olhando as pessoas, como se dissessem “estamos aqui, vamos estabelecer um duelo pelo sentido, entre nós e com vocês, daqui a pouco…” Essa é uma materialidade já constitutiva do jogo: público e atores habitando uma duração. Em síntese, a pressão exercida pelo texto dramático é assumida não como algo que se realiza fora da cena (como no teatro dramático, fortemente amparado na referencialidade própria da significação), mas sim dentro do “ringue”, espaço de embates das forças. Há uma modulação topológica entre materiais, situações, leituras ao vivo do próprio texto dramático em encenação, recursos audiovisuais e plásticos etc. Nenhum deles traduz um possível significado, mas modula texturas, imagens e sons em sentidos que, por sua vez, modificam as materialidades. Se o texto dramático de Hamlet nos pressiona na história de um rei que envenena seu irmão para tomar-lhe a coroa e a mulher, temos um ator que dá o seu texto passando um bife com um ferro elétrico. São duas imagens que não se explicam e com as quais atores e publico passam a jogar. O Todo se compõe aberto, com fissuras e variações contínuas. Não é o código da ilusão cênica que o espetáculo busca, e que costuma postular um suporte para uma significação que sempre lhe é ulterior. Em vez disso, ocorre uma tensão entre materialidade cênica e texto dramático, resultando numa exposição e transformação topológica dos suportes em sentidos e vice-versa, de modo sempre inconcluso.

Ainda nessa linha encontramos a intervenção no Viaduto do Chá, realizada pelos grupos Teatro da Vertigem (São Paulo), La Outra Orilla (Peru) e Zikzira Teatro Físico (Belo Horizonte-Londres), com a consultoria de Antônio Araújo: A última palavra é a penúltima[2]. Na passagem subterrânea há duas vitrines laterais, nas quais o público entra e senta em cadeiras dispostas no local. Há um jogo de visibilidade/invisibilidade, pois os filtros dos vidros tornam as vitrines transparentes ou opacas, conforme a cena. Os performadores misturam-se a públicos que transitam pelo espaço, gerando uma zona de indiscernibilidade entre os dois. Trilha sonora, desenho de luz, espaços e ações criam um ambiente de imersão. A materialidade cênica (trilha sonora, concretude do lugar, intromissão de elementos reais como o público que transita pelos espaços, imagens, vocalizações, ações corporais etc.) opera-se num fluxo expressivo, numa duração e numa implicação de elementos que não estão previamente listados para surgirem num espetáculo cênico.

As experiências teatrais pós-dramáticas e performativas articulam o compartilhamento de uma duração: dos corpos que se olham na exposição mútua, numa experiência direta do tempo e outras percepções. Realizam uma expansão da criação teatral, abrindo-se para o campo dos entremeios. Constituem um fluxo operatório e expressivo da materialidade exposta no discurso cênico, ao modo de uma linguagem energética. E por fim, envolvem sentidos, corporeidades, eventualidades do processo, variações abertas e divergentes, numa implicação e desimplicação da “materialidade da comunicação”, a ponto de trazerem os elementos da vida, do efêmero e daquilo que não entra no campo do teatro da significação, isto é, do teatro dramático. O que não quer dizer ser este um “teatro melhor”, mas sim uma cena outra, que merece investigação e estudos.

Mais do que listar exemplos, desejamos adentrar no impensado das criações cênicas. A materialidade cênica é uma das forças que atuam nessa direção. Ela renova a ficção, domesticada pelas nossas necessidades de acordo e identificação, quando o mundo a nossa volta incessantemente nos contradiz e requer não mais interpretação, mas uma interferência performativa e renovadora dos afetos e limiares do humano.

Notas e referências

  • Artigo publicado originalmente na Revista ArteFilosofia , V. 4 N. 7 (2009). Versão modificada e atualizada.

[1] Ensaio Hamlet. Companhia dos Atores (RJ-Brasil), baseado no texto de Willian Shakespeare, com direção de Henrique Diaz. Performance de Bel Carcia, César Augusto, Felipe Rocha, Emilio de Mello, Marcelo Olinto, Malu Galli. Belo Horizonte, Festival Internacional de Teatro Palco e Rua(FIT-BH), 02/08/2006.

[2] A Última Palavra é a Penúltima – Intervenção Cênica a partir do “O Esgotado” de G. Deleuze Direção: André Semenza e Fernanda Lippi (Zikzira – BH/MG/Brasil – Londres/Inglaterra), Carlos Cueva (LOT – Lima/Peru), Eliana Monteiro (Teatro da Vertigem – SP/Brasil).

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2006.

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.

______. Working in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva,

1998.

______________. Pós-Teatro: Performance, tecnologias e novas arenas de representação. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc. Ativo em 04.05.2007.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

_______________ e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa – São Paulo: Editora 34, 1997.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade. Conferência no 6º Encontro Mundial de Artes Cênicas (ECUM). Curadoria de Antônio Araújo. Belo Horizonte: 20 de março de 2008.

GIL, José. A Imagem-nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Agua Editores, 1996.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Prefácio de Peter Brook. Tradução de Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

KIRBY, Michael. A formalist theatre. Philadelphia/EUA: University of Pennsylvania Press, 1987

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naif, 2007.

MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

LÉVY, Pierre. A ideografia dinâmica: rumo a uma imaginação artificial? Tradução de Marcos Maocionilo e Saulo Krieger. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva- Fapesp, 2005.



Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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