No prólogo de seu livro em que analisa o teatro pós-dramático, Hans-Thies Lehmann (2007) refere-se às diferenças entre as práticas culturais tecnológicas e midiáticas, que se tornam cada vez mais “imateriais”, e o teatro, definido por uma “materialidade da comunicação”. O autor inclui nessa última todos os recursos, pessoas e equipamentos necessários à execução do espetáculo ao vivo e presencial. Nessa direção, o teatro subsiste numa situação mais frágil por não circular e ser passível de comercialização no mesmo patamar de seus concorrentes. Pode-se perguntar, a partir desse quadro, o que caberia ao teatro no mundo contemporâneo?
“Eu e Lloyd começamos o DV8 porque a gente não entendia a dança. Então, nós éramos bailarinos treinados e a gente ia a espetáculos de dança e nos sentíamos completamente por fora.”
Fiz essa entrevista com Nigel Charnock em 2005, um dos fundadores do DV8 Physical Theatre. Tiago Gambogi fez a tradução ao vivo, realizando também algumas intervenções. Nigel estava em Belo Horizonte para ensaios e apresentação de Made in Brasil, espetáculo dirigido por ele e com atuações de Tiago e Margaret Swallow. Na ocasião, eu preparava minha dissertação sobre improvisação e teatro físico. Nigel nos deixou no dia 02 de Agosto deste ano. Um artista ainda jovem, de muito talento e energia criativa. Um achado, para mim, é o modo como Nigel relata a questão do corpo na dança moderna, no teatro dramático e no teatro físico.
Há um teatro de estados. Ou, melhor, teatros. E para trazer alguns elementos sobre o tema, selecionei trechos de dois textos. O primeiro é de Eduardo Pavlovsky, dramaturgo, ator, diretor, ensaísta e psicoterapeuta. O segundo é de Jorge Dubatti. São ensaístas argentinos que poderiam estar mais presentes em nossa cultura cênica. E também em nosso aporte teórico do teatro contemporâneo. Os autores abordam um campo de experimentação que não se pauta pela representação. E o fazem utilizando as ferramentas conceituais que buscam desmontar as concepções representacionais. O mesmo digo para os estudos da pesquisadora cubana, radicada no México, Ileana Diéguez, sobre as teatralidades liminares. Ela afirma, por exemplo, que é necessário “problematizar a representação como espaço de diferenças”. Nesse caso, Ileana diz que “a arte atual, particularmente o teatro, deveria considerar as reflexões traçadas pela teoria pós-estruturalista”.
No caso em tela, Eduardo Pavlovsky e Jorge Dubatti utilizam conceitos extraídos da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mas não acredite que se trata de uma adequação de um pensamento criativo a outro. Pois a arte, sim, ela pensa por seus próprios meios, dirá Deleuze.
Os dois textos abordam o “teatro de estados” não de um modo geral, mas sim nos processos de singularização do teatro de Ricardo Bartís. Vamos aos nossos ensaístas:
Renato Cohen, no seu luminoso livro Working in progress na cena contemporânea, registra o que ele chama de “característica ontológica” desse procedimento: “processualidade pelo uso de trama de leitmotiv, rastros de passagem, vicissitudes – e a especificidade dessa operação criativa – hibridização, superposição de conteúdos”. Desses elementos, imprescindíveis, destacamos nesta postagem o leitmotiv, esse motivo que retorna, como traço essencial para a composição cênica.
O campo working in progress, segundo Cohen, vai “desde manifestações transitórias (cenas não configuradas, laboratórios, situações cotidianas), contextos ulteriores ao contexto artístico (‘cena da vida’, ‘cena da mídia’), até expressões híbridas, fronteiras (performances, manifestos, intervenções) e, finalmente, a cena teatral contemporânea.”
De posse desse mapa, podemos dizer como procedemos com o leitmotiv em termos de composição cênica. Gilles Deleuze e Félix Guattari (Mil Platôs, vol. 4) dispõem uma ferramenta essencial para pensar criativamente com esse motivo em reiteração diferida: o ritornelo.
Do ritornelo
Deleuze e Guattari (1997) apresentam um dos conceitos mais belos de sua filosofia: o ritornelo. De modo simples e de origem musical, um refrão, algo que se repete – uma periodização. Ou traçado de um território. Os filósofos o definem:
“O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, ali se instala ou dali sai. Num sentido genérico, chama-se ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motrizes, gestuais, ópticos etc.). Num sentido restrito, fala-se de ritornelo quando ao agenciamento é sonoro ou dominado pelo som – mas por que esse aparente privilégio?”
E, em seguida, apresentam três situações de ritornelo:
Proibido deitar: este é o título da intervenção urbana produzida pelo Grupo de Teatro O Clube, cujo mote é a expressão homônima inscrita nos bancos do Parque Municipal de Belo Horizonte. O elenco performador tem as presenças de Patrícia Siqueira, Daniel Toledo, Isaias Campara, Regina Ganz e Carolina Rosa. A direção é de Rita Clemente.
Por que chamar este tipo de trabalho de intervenção urbana? Em primeiro lugar, porque difere, pelo menos em princípio, do teatro em espaços abertos e do teatro de rua. Alguns outros nomes são utilizados para definir as performances que interagem diretamente com os espaços, como site specific e environmental theater. Cada um desses termos carrega suas conexões, vínculos, percepções, contextos etc.
Tadeusz Kantor (1915-1990), um artista de happenings, esculturas, desenhos e teatro, publicou inúmeros manifestos poéticos que se tornaram, por sua vez, outras criações. Não são espelhamentos ou identidades entre textos e performances, e sim um jogo de afecções mútuas. Tomemos uma definição do próprio Kantor para seu teatro: a realidade do nível mais baixo. Uma expressão emblemática de sua arte, que pode ser mais bem compreendida a partir de três questões:
a) a crítica da ilusão teatral (e do teatro-representação);
b) a arte moderna, a abstração e o desaparecimento do objeto e da figura humana;
c) a crítica de Gordon Graig, um dos renovadores do teatro, que considerava inferior a arte do ator vigente na sua época, por estar presa à emotividade. Diferente de outras artes (música, artes plásticas), a matéria da interpretação teatral consistiria na própria existência pessoal do artista, sujeita ao movimento das paixões e, portanto, sem as definições ascendentes da beleza que se igualaria à precisão. Na sua visão, o ator deveria ser uma supermarionete.
Kantor responderá a esse contexto justamente com a realidade do nível mais baixo. Vejamos: