A seguir, trechos de um artigo de Ferdinando Taviani sobre Ryszard Cieslak, este ator que foi um dos maiores colaboradores de Grotowski. Os trechos citados abordam principalmente a questão da partitura de ações físicas, procurando relacioná-la às questões da criação. O processo de composição da obra O Princípe Constante está em foco. A citação discute, ainda, a função do treinamento nessa via Grotowski-Cieslak. Interessante notar, também, como Taviani traça relações entre corpo e pensamento. No final do texto, vídeos sobre treinamento, guiados por Cieslak e um pequeno fragmento de O Príncipe Constante.
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“Você pode ver o programa de treinamento de Cieslak num filme preto e branco produzido em 1972, Training in the Wroclaw Laboratory Theatre (1). O treinamento consiste em exercícios feitos por Rena Mirecka e Ryszard Cieslak, supervisionado por Grotowski. Você pode acompanhar um exercício físico num fluxo orgânico que é pensamento. Você pode ver como a posição gera uma imagem que cria uma ideia, uma linha de pensamento, uma situação, um fragmento de uma possível história.
As pessoas que ainda usam a inadequada expressão ‘teatro do corpo’ deveriam assistir este filme, até que eles possam compreender que é totalmente o oposto: esse é um ‘teatro da mente’ – nele, processos mentais se fazem visíveis e tangíveis. Algumas vezes, como peixes num rio, “contentes” em emergir a superfície, mas o que nós estamos vendo é o ritmo do pensamento. O que é “corpo” e proteção na vida cotidiana, é treinamento para Cieslak em sua vida extracotidiana, tornando-se pensamentos vindos do coração-coragem.
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Mas vejamos Cieslak. Stefan Brecht foi correto quando ele sugeriu que os movimentos de Cieslak, expressões faciais e sons ‘não expressam pensamentos ou sensações externas mas somente estados de espírito emocionais e volitivos’, e o que ele expressava desses estados naturalmente, ‘o corpo fosse inteiramente o órgão do espírito’.
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Veja o que Cieslak fala para Schechner, sobre o que lhe acontecia:
‘A partitura é como um vidro, dentro do qual uma vela está queimando. O vidro é sólido; ele existe, você pode depender dele. Ele encerra e dirige a chama. Mas o vidro não é a chama. A chama é meu processo interior a cada noite. A chama é o que ilumina a partitura, o que o espectador vê através da partitura. A chama é viva. Mas como a chama se move no vidro, flutua, cresce, diminui, quase se extingue, subitamente brilha, responde a cada sopro de vento – assim minha vida interior varia de noite para noite, de momento para momento… Eu começo cada noite sem antecipações: isto é o mais difícil de aprender. Eu não me preparo para sentir nada. Não digo: ‘na última noite esta cena foi extraordinária, eu tentarei fazê-la assim novamente’ . Quero apenas ser receptivo ao que acontecerá. E estou preparado para absorver o que acontece se eu estou seguro na minha partitura, sabendo que ainda que não sinta nada o vidro não se romperá e a estrutura objetiva, trabalhada por meses, ajudar-me-á até o final. Mas quando numa noite começa que eu possa incandescer, brilhar, viver, revelar – sinto-me preparado para isso sem que o tenha antecipado. A partitura permanece a mesma, mas tudo é diferente porque eu estou diferente’. (Schechner 1973:295).
Quem é o autor e quem é o performer? Essas não são as espécies de trabalho que podem ser designadas por um simples nome. Grotowski e Cieslak podem ser vistos como colaboradores somente pela compreensão de seus nomes como uma unidade. Na realidade, não existe tal coisa como colaboração entre partes: existe interação, um processo de devir, uma profunda e bem pensada configuração, um canal que é necessário e já insignificante em seu próprio direito. E como tal, que somente flui.
A configuração exterior não pertence a Grotowski nem a Cieslak. O fluxo não é Cieslak ou Grotowski. Para os membros da audiência e para a câmera, o Príncipe existe, ele é uma personagem definida e tem o seu nome afixado. Porém, uma vez mais, relembremos que atrás do texto fixado não existe tortura e não existe morte.
Grotowski disse, em diversas situações, que nenhum dos trabalhos que ele fez com Cieslak, em O Príncipe Constante, começava com o texto. Dos detalhes da vida experimentados, uma partitura com ações físicas e sons era configurada e eles procuravam objetivá-la, e com a qual relatavam as memórias da adolescência, que não possuía nada de doloroso [como é, no caso, o papel de mártir do Príncipe Constante]. As ações que a partitura de Cieslak abrangia vinham de seu passado, de sua primeira experiência de amor, naquela idade em que o erótico é como, em nenhum homem, a terra entre a sexualidade e a oração, onde os impulsos biológicos se confundem com as urgências espirituais. Era um meticuloso trabalho de reunião e paciente reconstrução.
Quando a partitura estava configurada, quando ela possuía uma clara e estável forma – e consequentemente uma forma objetiva – referencias para a personagem do Príncipe Constante eram cuidadosamente inseridas nela. As palavras do texto eram colocadas na partitura vocal. E todos os signos que a audiência reconhecia como esperança, amargura, desespero, tormenta, gelo na alma, dor, e morte eram entrelaçadas junto com a partitura física. O contexto era estabelecido: o relacionamento entre o Príncipe e as outras personagens – que é a situação, o que dá forma ao significado dramático – tudo isso era o cuidadoso artifício de uma ilusão. Mas isso não é o que realmente importa. Isso era somente um recipiente de vidro, alguma coisa que a audiência poderia acreditar como sendo oriunda da performance.”
Ferdinando Taviani –
Vídeos –
httpv://www.youtube.com/watch?v=1VCyGPm1VJM&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=G7IG6c8D73c&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=a2quI2_KDFU&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=dRyLLTvs00c
httpv://www.youtube.com/watch?v=P7n-hTTIffk&feature=related
httpv://www.youtube.com/watch?v=Bmf9ALNvN7g
Referências –
– Veja também: Grotowski e a arte do ator: encontros com Tatiana Mota Lima – por Luiz C. Garrocho
– A citação foi extraída de: TAVIANI, Ferdinando. In Memory of Ryszard Cieslak. In SCHECHNER, Richard and WOLFORD, Lisa (editedby). The Grotowski Sourcebook. London and New York: Routledge, 1997.
– Tradução livre de LCG.
– Imagens (fotografias): a) After DarkMagazine, September 1970, by Max Waldman e b) Revista eletrónica Imágenes
[i] Dirigido por Torgeir Wethal, produzido pelo Odin Teatret Films para o Programa Experimental da Televisão Italiana (em duas partes, contando cada parte 50 minutos). Dois atores do Odin Teatret tomam parte no filme como alunos de Cieslak.
2 respostas em “Ryszard Cieslak e a partitura – uma citação de Ferdinando Taviani”
Ao ler o artigo de Ferdinando Taviani sobre Ryszard Cieslak, ator que foi um colaborador de Grotowski e assistir aos vídeos percebi a abordagem da partitura de ações físicas, relacionadas com a criação. Chamou-me a atenção a intensidade dos preparos do corpo, instrumento da ação. Percebi que toda essa intensidade se transforma em energia em um fogo que contagia, porque há um fluxo orgânico que cria uma imagem, uma ideia um fluxo de pensamento, uma situação e, que embora haja um grande exercício do corpo o que prevalece é o teatro da mente, visto que é preciso criar e permitir a fluidez de sentimentos e ações a todo o momento.
A ideia de fluxo, usando como exemplo o Training in the Wroclaw Laboratory Theatre fica mais clara a partir do texto de Taviani. É como se o corpo estivesse lendo notas enviadas pelo pensamento constante, a partir daí a ideia da vela cercada pelo vidro faz todo sentido. A partitura pode ser a mesma, porém ela é transformada a partir do ponto em que o ator não é o mesmo ao executá-la novamente, isso por ter o fluxo como vetor. É interessante como em uma das entrevistas Cislak cita os músicos de jazz como exemplo da improvisação do corpo. É preciso estar atento ao parceiro de cena e não perder na partitura uma nova sugestão, é preciso ler também as “notas” enviadas pelo outro.