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Os diálogos físicos: um exercício em improvisação e composição

‘Extraordinary’ by f.a.b. – The Detonators Photography by Toby Farrow www.tobyfarrowphotography.com

Fisicalidade

Os diálogos físicos poderiam ser também chamados de diálogos corporais. Chamo de “físicos” porque há toda uma ênfase na fisicalidade das trocas, dos contatos e contágios estabelecidos entre os participantes desses “diálogos”. O termo ainda coloca-nos diante – e dentro – daquilo que está emergindo no nosso espaço de atuação, envolvendo a qualidade de nossa atenção, nossos impulsos e relacionamento com o outro, o espaço e o tempo.

Os diálogos físicos colocam toda sua carga naquilo que Lúcia Romano, na obra dedicada ao Teatro Físico, chama de corpo manifesto e materialidade cênica. Trata-se também de um teatro de fluxos pulsionais, para utilizar um termo de Patrice Pavis. Não sendo a mesma coisa, me inspiro na ideia de uma “arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”, conforme desenvolvido por Renato Ferracini, no livro homônimo.

Não se trata de uma oposição entre teatro do corpoteatro de texto. Depende, antes, da concepção de texto que se tem em mãos e, ainda,  de como se trabalha com esse texto.

Esse é um plano de criação e pesquisa que desconsidera as fronteiras entre teatro e dança. Elas podem se desmanchar ou apenas flutuar. No campo da dança contemporânea, por exemplo, cito o trabalho de Daniel Lepkoff (physical dialogues) cujas contribuições são muito fecundas para esse tipo de pesquisa. E o que ele diz poderia servir de guia para essa fisicalidade emergente:

“Nós observamos, nós sentimos e, então, nós atuamos. Nós criamos nossas próprias imagens e construímos nossas próprias significações”.

No entanto, diria que o diálogos físicos tem por referência primeira o campo do Teatro Físico. Uma entrada que se dá mediante improvisação e composição, estrutura (de ações) e  variação (incorporação de ruídos, acasos, ramificações). São exercícios compositivos, cujo foco é o ator-performador.

Farming in the Cave – foto by T. Karas

Partitura e jogo

Os diálogos físicos podem ser entendidos, ainda, como diálogos entre partituras, entre partitura e jogo, ou simplesmente numa situação de jogo.  Entre uma e outra  podem ocorrer, ainda, todas as graduações possíveis.

O exercício improvisacional-compositivo envolve, portanto, os seguintes aspectos: a) composição no instante (instant composition) e b) estudo de um desenvolvimento de uma situação.

Observando crianças

Um modo de entender o funcionamento dos diálogos físicos e de realizar pesquisas, inclusive, reside na observação das brincadeiras das crianças. Faço um relato de uma dessas observações que fiz de  um dos meus filhos e outro menino (os dois por volta dos 09-10 anos de idade):

Um menino brincava num campo de futebol de salão em volta de uma trave. Ele corria, pulava na trave, pendurava-se, soltava-se e caía, para depois girar no chão, fazer outras sequencias de movimentos, retomar o ponto de partida e assim recomeçar. Este era basicamente o seu ritornelo. Luís Felipe, também mais ou menos da mesma idade, sem conhecer o outro menino (e sem estabelecer qualquer contato direto), pulou na outra trave e começou, também, uma sequencia de movimentos. O que havia de contato imediato entre um e outro é que eles possuíam muitos pontos coincidentes (pendurar-se na trave, cair, etc.). Porém, havia defasagens e diferenças. Aos poucos, percebi que os dois estabeleciam um diálogo físico no qual se dava uma troca intensiva. Um sabia do outro, havia esperas, surpresas mútuas, etc. Depois de um tempo, que não sei calcular, decidi que precisava ir embora e levar Luís Felipe. Neste momento, houve a única troca de palavras e estabeleceu-se o relacionamento direto: eles se despediram com um “tchau” verbal e gestual.

Quais são as questões trabalhadas nesse diálogo físico que permitem uma apropriação para a pesquisa? Enumero:

a) cada um tem uma sequencia própria de movimentos e não depende absolutamente do outro, ou não está à mercê dele;

b) eles se permitem ser influenciados pelos movimentos do outro, tornando-se receptivo ao que o outro faz, sendo afectado por ele;

c) nesse sentido, a queda de um implica, por exemplo, em uma lentidão ou numa maior velocidade no movimento do outro como resposta;

d) o olhar flutua, sem que tenha de grudar no outro, atento, entretanto, e principalmente, ao que entra no campo de percepção pelo canto do olho;

e) os movimentos não estavam substituindo a linguagem verbal em seu uso linear, não poético e convencional, como se a tivessem mimetizando – ao contrário, criavam zonas autônomas intensivas;

f) o diálogo físico ainda era favorecido por alguns apoios, tais como o movimento em uníssono (um copia o outro de tal modo que já não se sabe quem segue quem) e a capacidade de pegar algo do outro para si (o que pode ser feito também como imitação diferida, realizada um tempo depois), além de utilizar a resposta cinética.

Territórios e desterritorializações

Interessante observar no jogo dos meninos que o primeiro deles estabeleceu um território através dos seus movimentos. Em outras palavras: um tempo-espaço de ritmo. A sequência reiterava-se por um longo tempo, o que permitiu que Luís Felipe captasse as linhas essenciais do jogo do outro. E para tanto usou da repetição, modificando-a ao mesmo tempo. Desse modo ele cria, para si, o seu próprio território.

E ele traça o seu território para, ao mesmo tempo, produzir desterritorializações. Processo esse que pode ser visto, seguindo Deleuze e Guattari em Mil Platôs, como meios de “aprender a desfazer, e a desfazer-se”. E então, continuam os pensadores, como nas artes marciais que operam no vazio, ocorrem “ataques, revides e quedas de peito ao vento.”

Uma observação do músico e compositor Sérgio Ferraz sobre o tema muito me inspira:

“Seriam assim dois vetores, um de territorialização (constituir o território a partir de um centro, a partir de um ritmo nascido do contraponto entre as permanências diversas) e outro de desterritorialização (quando o eixo firme do território, quando entre as permanências alguma linha solta, algum ponto solto, ganha força a ponto de fazer com que toda a geringonça comece a girar de outro modo, comece a girar em outros sentidos).”

Num outro artigo escrevi sobre os territórios  suas desterritorializações: A composição cênica e o ritornelo, a partir de Deleuze e Guattari. Por aqui basta lembrar que um território envolve periodização, permanências e reiterações (repetições, voltas etc.).

Nos diálogos físicos ocorrem todos esses pontos de contato, reviravoltas, apropriações do movimento alheio (como se pode ver na imagem de Tiago Gambogi e Margareth Swallow – a primeira da série). Há uma dimensão coreográfica, mas ela não se restringe ao extensivo (mensurável e numérico), mas ao intensivo (não mensurável). Estamos no âmbito das ações poéticas. Na imagem a seguir, do grupo de Chicago Plasticene Physical Theater, podemos notar essa formação de conjunto e o impacto visual que ela proporciona.

Plasticene Physical Theater

Desenvolvimento de uma relação

Nos diálogos físicos, buscamos uma composição cênica. É importante, desse modo, que possamos ultrapassar qualquer esfera de mero “exercício físico”. Estamos procurando instalar uma poética: de risco, de desejo e de fluxos. Dessa pesquisa pode resultar uma criação cênica. Entre a composição no instante e a composição mais ou menos estável, há muito que explorar. É importante que possamos perceber e favorecer o desenvolvimento de uma relação. E sempre lembrando que se trata de linhas a-paralelas, pois a convergência totalizante e fechada não é nosso objetivo. Pelo contrário, há que sempre incorporar aberturas, acasos, rupturas e descontinuidades.

Dois “buracos” podem nos deixar imobilizados, quando caímos neles: um é aquele em que os atores-performadores tornam-se incapazes de aceitar as ofertas, tornando o jogo insípido, sem contaminações mútuas e sem desenvolvimento; o outro é aquele em que a busca de contato gera  estruturas fechadas quanto à significação e dramaturgias excessivamente lineares.

Observamos que sempre aparece o que chamo de “nó dramatúrgico”. Momento em que uma tensão máxima é atingida, solicitando dos performedores uma decisão quanto aos próximos passos.  Nestes momentos encontra-se o potencial acumulado do jogo.

No próximo post apresentarei algumas idéias sobre estratégias para compor com outro.

A seguir, alguns vídeos de Teatro Físico.

Referências –

– BONFITTO, Matteo – A cinética do invisível: processo de atuação no teatro de Peter Brook. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

– DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de PeterPál Pelbart e Janice Caiafa – São Paulo: Editora 34, 1997.

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas, São Paulo: Unicamp, Imprensa Oficial, 2001.

FERRAZ, S. MÚSICAS E TERRITÓRIOS. Polêm!ca Revista Eletrônica, América do Sul, 9 19 08 2010.

MARINIS, Marco de. Semiologia e teatro contemporâneo. Conferência no Fit-BH. Belo Horizonte, Teatro Marília: 10.08.2010.

ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva- Fapesp, 2005.

DV-8 Physical Theater

– Marcelo Gabriel –

Plasticene Physical Theater –

Zikzira Physical Theater –

Tiago Gambogi –

A composição cênica e o ritornelo. Por Luiz C. Garrocho

Estudos de composição cênica e corporal: uma abordagem. Por Luiz C. Garrocho

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

Uma resposta em “Os diálogos físicos: um exercício em improvisação e composição”

Salve, salve Davi!

Sim, tenho em mente também os momentos em que pudemos estudar composições corporais. Um dia desses marcamos um encontro desses bandos…
Abraços

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