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Grotowski e a arte do ator: encontros com Tatiana Motta Lima

cieslak

A arte do ator e os caminhos trilhados por Grotowski: assim posso resumir o tema recorrente nos encontros  com Tatiana Motta Lima (atriz, doutora em artes cênicas, professora da Uni-Rio).  Logo no primeiro encontro, quando ela conversava com o grupo de formandos dos alunos e alunas do Curso Técnico de Formação do Ator, da Fundação Clóvis Salgado (Belo Horizonte), dirigidos por Cristiano Peixoto, pude perceber a importância e a singularidade das colocações de Tatiana sobre a arte do ator, inspiradas em Grotowski. E sublinho a sua habilidade  em ouvir o outro e, junto com seus interlocutores, instaurar isso que é uma arte do encontro.

Como isso, a arte de um encontro, pode ocorrer? Em primeiro lugar, Tatiana não exercita o poder sobre um território (acadêmico ou extra-acadêmico), mas se faz mover por entre, desviando-se do que não interessa (e posso dizer, com Espinosa, fugindo daquilo que diminui o nosso poder de agir), espreitando aberturas para o novo.

Voltemos ao tema: Grotowski e a arte do ator. Houve ainda uma conferência aberta ao público, intitulada  “O Príncipe Constante de Ryszard Cieslak e a  ‘aceitação’ da natureza-corpo-fisioologia no Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski”. Tema de sua tese de doutorado. Depois, tive a alegria de abrir uma conversa curta mas intensa sobre as questões que me tocaram especialmente nos dois encontros. Entre elas, a noção de partitura em Grotowski e as tensões entre o campo do treinamento e da criação. No primeiro encontro Tatiana interagiu com a criação de Cristiano Peixoto e dos alunos e alunas do Cefar. Um trabalho instigante, que me deixou ligado nas cenas, mesmo estando numa fase inicial. Cristiano faz parte do Pontífex, grupo inovador que trouxe o treinamento de Grotowski, juntamente com Alexander de Moraes e Benjamin Abras, na sua formação inicial. Muito aprendi com eles, seja assistindo aos espetáculos, seja discutindo e trocando idéias e procedimentos, seja participando de treinamentos.

Não participei dos outros encontros de Tatiana com o grupo, mas registrei alguns tópicos essenciais, pelo menos para mim, quando acabou de assistir ao primeiro ensaio aberto e falou para o grupo. Ela situou três planos que me tocaram diretamente, e que para mim são essenciais: a) a atenção flutuante; b) as parcerias e contatos; c) a tarefa ou segredo do ator-atriz.

A atenção flutuante caiu como uma luva. Há tempos venho investigando esse aspecto. Mas Tatiana colocou de um modo muito interessante: como a linha de atenção ganha o espaço, volta para mim que atua… Trata-se de perceber onde essa linha torna-se estática demais, como posso sair dela para outra extensão… Isso foi motivo, também, de nosso encontro encontro.

O segundo aspecto diz sobre a necessidade de sermos parceiros nas imagens e sensações. E isso envolve os parceiros tanto “materiais” quanto “imateriais”. Do visível ao invisível. Dos sons aos elementos mais concretos. Tatiana: “e é sempre uma questão de músculos e intensões”. De como reagimos aos estímulos que entram no nosso campo perceptivo (o que tem tudo a ver com a atenção flutuante). Uma resposta que, na sua visão, seria ao mesmo tempo sensorial e significante para a cena. E ela pergunta em determinado momento: “em que grau podemos conseguir essa parceria?”

Quanto à tarefa ou segredo, temos aí um algo que diz respeito ao universo daquilo que não fica no primeiro plano para o espectador. O foco de atenção do ator, se entendi bem, deve estar na perseguição dessa tarefa ou segredo. Algo oculto, sim. Podemos pensar com Grotowski: aquilo que eu percebo mas não compreendo necessariamente. Tatiana falou da necessidade de o ator procurar os fundos de estanheza e que os segredos teriam a ver com isso. Com a criação de uma área de invisibilidade.

O tempo todo, e mais ainda na conferência, Tatiana enfatizou que “é do outro que tudo vem”. Assim, uma atividade viria antes como reação a um estímulo cria ressonâncias e é mais interessante do que a minha imposição. Eu completaria dizendo que uma impressão vem sem antes de uma expressão. Ou que esta última não vem separada daquela. A partitura de ações, por exemplo, assunto recorrente na Conferência sobre a fase do Teatro Laboratório que foi a criação do Príncipe Constante, é entendida por Tatiana como um modo de estabelecer contato com o outro e não como a execução de uma sequência isolada dos parceiros. Na nossa conversa, ela lembrou a diferença entre a partitura concebida por Eugenio Barba e a que Grotowski trabalhou. Naquele, as ações são elaboradas por cada ator independentemente do outro e depois colocadas juntas, sendo que o espectador é que faria a ligação entre as duas linhas. Em Grotowski a partitura já surgiria sob a força do contato, da relação. Os impulsos perseguidos pelo ator, nesse plano de pesquisa e criação, estariam em relação direta com o outro. Num momento da conferência, Tatiana pergunta: ” onde termina o eu e começa o outro?”

Ainda dentro da fala ao grupo, Tatiana fez observações sobre a distância entre o que eu faço e a minha percepção do que eu faço. Já havia visto esse aspecto em Grotowski, mas não com a visão tão bem definida quanto essa. Abrir espaço nos relacionamentos. O que converge com Deleuze e Guattari, quando estes dizem em O que é Filosofia, que a “carne não é a sensação”.  É preciso criar distância, seja para que a percepção não se feche na minha paixão, seja para que na criação entre um pouco de caos, como dizem os pensadores.

Não vou, obviamente, resumir a conferência. Ficamos esperando a publicação da tese de doutorado de Tatianta Motta Lima, que já está sendo negociada com uma editora, ao que parece. Volto-me às questões que me tocaram, principalmente à idéia de um Grotowski em processo, sempre questionando, modificando-se sem cessar.  Coloco, então, as minhas questões nesta tela: as tensões entre o plano do treinamento e da criação.

Por que coloco assim a questão? Falamos de dois planos: o do ator que persegue seus impulsos, constituindo partituras de ação como meio de estabelecer contato e reagir a estímulos, e o da composição cênica. Situamos nesse último campo as técnicas dos Viewpoints.

Tatiana questiona o tempo todo o domínio da técnica sobre o ator :  é preciso sempre se rebelar, diz ela.   Mas  não se acredite que Tatiana adere a um tipo de espontaneísmo. Pelo contrário, uma das lições básicas de Grotowski é que rebeldia é rigor. Uma técnica deveria ser uma entrega à vida que pulsa. Na nossa conversa, Tatiana questionou  o aspecto excessivo de uma visibilidade da cena sobre o trabalho do ator, em termos de sua exposição para o ponto de vista da audiência. Discutimos isso: a montagem do ator e a montagem do diretor, problema que foi apontado por Einsenstein na sua criação cinematográfica e que foi explorado por Barba e Grotowski, talvez na esteira de Meyerhold. O meu questionamento: será que esses dois planos são excludentes? Será que não podemos inventar um plano no qual as duas montagens possam ser acionadas sem que uma descarte a outra? Estamos, então, abordando as funções do trabalho do ator sobre si e do trabalho sobre a cena. Entendo que a questão concerne à tensão entre uma coisa e outra, sabendo-se que não podemos reduzir uma à outra. Coloco outro dado: a necessidade de incluir os estudos de composição cênica no treinamento do ator.

Abro um parênteses: expor uma conversa é algo complicado. O outro nunca pode se colocar. Ou escrever já não seria a presença do outro na sua ausência? Então,  a escrita pode ser mais do que a repetição do mesmo. E invoco, aqui, o mestre Maurice Blanchot:

“Mas quem é o eu? onde está o Outro? O eu está seguro, o Outro não, insituado, insituável, no entanto falando a cada vez e, nessa fala, mais Outro do que tudo o que há de outro.” ( A conversa infinita, vol. 2)

Estou falando das afecções que sofri nesses encontros com Tatiana, versando sobre a arte do ator e sobre as suas apropriações da criação cênica, numa perspectiva de trabalho colaborativo e participativo. A conversa não se conclui. É um espaço entre ações e pesquisas de ações.

Devo me situar, entretanto. A perspectiva que me coloco é a da criação em teatro físico e working in progress. O que não é de modo algum um salvo-conduto. Pelo contrário, é um não ter onde repousar a cabeça. Abordamos também essas vias de criação. Tatiana perguntou se não chegaríamos numa fisicalidade sem a via dos impulsos, ou daquilo que Grotowski chama de organicidade. Lembrei que não se trata de uma mera extensão física, mas sim de uma fisicalidade intensiva. Lúcia Romano, na sua obra O teatro do corpo manifesto: o teatro físico, diz que é físico porque envolve a materialidade da cena, entendendo-se esta como corporeidade. Apresentei-lhe também o que seria uma “abordagem física do problema da atuação”, como entendo a questão da formação do ator. Uma expressão retirada de Stephen Wangh, num livro intitulado An acrobact of  the heart, inspirado no trabalho de Grotowski e com um posfácio de André Gregory. Entendo que o plano trazido por Grotowski provocou mudanças numa geração de artistas dos EUA, tendo em vista  o predomínio de uma visão psicológica de Stanislavski (que seria uma deformação do Método). O que é físico, aqui, na verdade seria psico-físico, na sua corporalidade. Entretanto, o campo do Teatro Físico concerne à uma vertente de linguagem que, por sua vez, também se inspira muitas vezes  em Grotowski e  em Barba  entre outras influências. Uma dos traços essenciais dessa via refere-se à necessidade de criar um teatro de estados corporais, sem falar na presença puramente física dos corpos – que, numa perspectiva de linguagem, nunca será somente física.

Acredito que um “abordagem física do problema da atuação”, pode envolver planos heterogêneos. Numa tentativa de síntese, diria que esta via envolve o trabalho sobre a natureza dos impulsos, as relações com os espaços-tempos, a natureza dos apoios e sua relação com a consciência corporal, os estudos de composição cênica, que podem estar juntos e se coordenarem mutuamente como ferramentas para o ator. Falo, então, de um plano no qual pode se dar um treinamento em e como linguagem.

Grotowski paira como um desafio incessante. Compreender sua singularidade e a potência de suas pesquisas e inquietações é uma tarefa difícil e mais do que necessária. Tatiana está nessa investigação. Fazendo das perguntas de Grotowski meio de perguntar pelo caminho de si mesma como pesquisadora e artista.

Uma conversa infinita. Há referências no caminho. Mas elas não podem delimitar nossas experiências. Para mim, depois que Renato Ferracini falou de uma “arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”, penso que o diálogo com as pesquisas e criações dos teatros físicos e os caminhos trilhados por Grotowski pode ser muito fecundo para uma arte renovada do trabalho do ator. Chamaria a atenção, sobretudo, para o plano de pesquisa e criação de Fernanda Lippi no Zikzira Teatro Físico, também inspirado em Grotowski. Volto-me para as dramaturgias da cena, para o habitar de uma duração e de uma paisagem corpórea e afetiva como horizonte de problemas.

Tatiana Motta Lima renovou em mim o desejo de aprofundar o pólo da pesquisa do treinamento em conjunto com o plano da linguagem e da criação. Este texto é a minha visão do jogo ou arte do encontro: de como jogamos. E enquanto isso aguardo a publicação do livro de Tatiana, torcendo para que sempre haja a possibilidade de manter uma conversa infinita:

“… esse jogo de pensamento não pode jogar-se sozinho, são necessários dois parceiros de jogo, é necessário que a mesma decisão, a mesma franqueza, a mesma relação com a aposta os induzam a jogar. (…) poderíamos dizer que a conversa que eles entretêm, esse movimento de voltarem-se conjuntamente para o infinito da afirmação, se assemelha ao diálogo dos jogadores de dados: estes dialogam não pelas palavras que trocam – são apaixonadamente silenciosos -, mas pelos dados que lançam alternadamente em face da imensa noite da inapreensível sorte que a cada vez lhes responde imprevisivelmente.” (Blanchot)

Referências:

– O encontro com Tatiana Motta Lima foi uma realização da Fundação Clóvis Salgado, através do seu Departamento de Extensão, coordenado por Lúcia Ferreira. A conferência se deu no dia 18.05.2009.

O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959 – 1969. Textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. Curadoria de Ludwik e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.

RICHARDS, Thomas. At work with Grotowski on physical actions. Preface and
essay Fron the theatre company to art as vehicle, by Jerzy Gotowski. New York:
Routledge, 1995.

ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: teatro físico. São Paulo: Perspectiva-
Fapesp, 2005.

BOGART, Anne; LANDAU, Tina – The Viewpoints Book. New York: Theatre
Comunications Group, 2005.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Prefácio de Peter Brook.
Tradução de Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

6 respostas em “Grotowski e a arte do ator: encontros com Tatiana Motta Lima”

E você tem uma trilha instigante para sua pesquisa, não é Patrícia?

Ficamos com vontade de ver esses desdobramentos e implicações de que você fala. Sei que tem um livro em espanhol que versa justamente sobre Grotowski e Artaud. Não sei o autor. Mas posso, com algum tempo, descobrir essa referência.

Vejo que você tem uma bela aventura pela frente.

Não posso concordar, somente, com a fala de Grotowski de que Artaud não realizou, que ficou no campo das idéias… Consigo entender o que GRotowski quer dizer com isso, mas penso que perpetua um engano, na verdade, faz proliferar um julgamente. Ora, Artaud realizou o laboratório em si mesmo, na sua pele, nas sua sensibilidade, escritos, desenhos etc. Ele nos deixou experimentos sim. Talvez não os que Grotowski gostaria de ver e laborar em cima. Mas dizer que ele ficou no campo das idéias não é justo com a obra de Artaud. Certo, pode-se dizer que ele não realizou em treinamentos corporais com atores todas as suas idéias. Mas deixou um legado imenso. Que continua a reverberar. Inclusive nas buscas de um teatro outro. Talvez, no entre-ver de José Celso e Artaud não se dê algo disso…

Enfim, um campo muito fecundo de trabalho. Este diálogo é muito interessante. Desdobramentos poderão vir. Aguardamos, então, seus estudos para nos ajudar nesse cipoal… Qualquer coisa, sendo mais específico o assunto, há um campo para contato neste site. E tentarei localizar o livro e, conseguindo, enviarei as referências por e-mail.

Boa sorte.

curioso isso!

mas o interessante é que no livro “Teatro Laboratório de Grotowski” o próprio dramaturgo faz referências a Artaud, dizendo mais ou menos, se não me falha a memória, que o Teatro Pobre tinha algo de violento tal qual a violência proposta pelo Teatro da Crueldade. que, ele, Grotowski, teria conseguido de alguma forma alcançar a concretização de algo que ficou só na idealização de Artaud. qd leio a definição de gesto nos escritos deixados por Artaud, por exemplo, sinto que grotowski alcançou um desdobramento do conceito e uma teorização só possível através de seus laboratórios cênicos – o que justamente Artaud não teve a oportunidade de vivenciar de forma significativa. pode-se pensar o msm sobre o teatro como um ritual proposto por Artaud e a construção o mito proposto por Grotowski, onde na verdade, um pressupõe o outro. qt a Zé Celso, acho que vc tem razão, por mais que eu veja marcas físicas ali, a questão que o distancia ainda mais de Grotowski é na ética que envolve o trabalho da corporeidade. pensei em trabalhar o diálogo e as dissonâncias no trabalho dos dois, mas vejo que o diálogo é mínimo e as dissonâncias prevalecem. o diálogo talvez apareça por causa de Artaud no caso, mas agora acho que é um equívoco eu ir por este lado.

obrigada demais pela abertura ao diálogo,

se tiver mais considerações eu agradeceria.
me sinto solitária nesta busca de respostas.

um abraço.
patrícia mc quade

Patrícia,

Há sempre pesquisadores que realizam conexões sobre Grotowski e Artaud. Entretanto, se lembramos o já clássico Em busca de um teatro pobre, veremos que Grotowski, ao ser perguntado pelo assunto, diz que sua pesquisa na verdade tem como ponto de partida Stanislavski e Vakhtángov. Percebemos, então, que são as pessoas que lhe chamam a atenção sobre as possíveis conexões entre seu trabalho e Artaud. De fato, nos anos 60, Artaud foi uma potência sempre invocada para a busca de um novo teatro, incluindo o discurso corporal etc. E acredito que as possíveis conexões entre Artaud e Grotowski começaram a se realizar, então. Sobre José Celso, não sei se Grotowski seja realmente uma fonte, talvez Artaud sim. O plano de imanência da corporalidade em Grotowski e José Celso me parecem bem distantes. Mas, então, entro num domínio que pouco conheço.
Abraços e sucesso na sua investigação

olá Garrocho,

achei muito interessante as suas colocações sobre essa linha de pensamento e pesquisa cênica de Grotowski. estou entregue aos estudos desse dramaturgo a algum tempo, incluindo Artaud, para a realização de minha dissertação de mestrado sobre “Os sertões” do grupo Oficina pela UFMG. sofro com as constantes dúvidas sobre aquilo que aplico em minha análise e me delicio com as descobertas que faço a cada dia. fazer uma análise do espetáculo dessa obra não é nada fácil. sinto grotowski pulsando em tudo o que observei e vi nessa obra, ainda que Zé Celso não deixe claro as influências de suas teorias em seu trabalho de criação. seu texto me apontou direções importantes que irei confirmar com releituras para reelaborar o que já havia definido. é um trabalho minucioso de decifrar hieróglifos, como diz Artaud. um desafio.

um abraço de agradecimento sobre as pontuações interessantes de seu texto e as indicações de outros que irei buscar para melhor me fundamentar.

patrícia mc quade

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