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Intervenção urbana: Olho da Rua

 

Territórios em fuga

Um homem se atira, de repente, aos pés de um transeunte no meio da calçada, para  recompor-se rapidamente em seguida. E novamente, a cada avanço do passante, joga-se numa sucessão de estranhas quedas e recuperações. Enquanto isso, da porta de uma loja de roupas, outro homem  se lança para o meio da calçada. O ato de ir ao chão é uma espécie de leitmotiv (motivo condutor) da intervenção urbana Olho da Rua. Outras ações ocorrem, num diálogo com o ambiente e os fluxos que o constituem. São territórios que se formam e logo se põem a fugir. Pequenas narrativas que explodem e se fragmentam. Frestas que se abrem no cotidiano da cidade.

A expressão “olho da rua” tem o sentido dos “olhares da rua”,  das multiplicidades e rizomas e, igualmente, o de “ser atirado na rua”. A pesquisa continua buscando extrair também do cotidiano da cidade as  imagens e sonoridades que possam ser incorporadas. É assim que aparecem outros gestos e posturas, lembrando situações de constrangimento vividos preferencialmente por pobres e negros, quando investigados pela polícia. Outro exemplo vem dos sons vocais produzidos pelos trabalhadores da limpeza urbana, quando correm e seguem aos gritos os caminhões de lixo.  

Essas incorporações, que podemos chamar de “versos frios” (porque concebidos fora do “calor” da improvisação, da composição no instante), passam a ser interessantes quando desconstruídas ou conectadas com acasos e conexões heterogêneas. No entanto, o desejo é de compor com os “versos quentes” (ações e gestualidades inventadas na hora, em resposta a uma determinada situação ou estímulo), para utilizar a linguagem dos repentistas.   

A pesquisa

Olho da Rua  surgiu no Laboratório de Teatro Físico e Performance, do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado. A partir da estreia no Festival de Performance de BH e, posteriormente, no Festival Transborda de Artes Transversais, tornou-se independente, seguindo por caminhos próprios. As pesquisas foram aprofundadas por três alunos, Christina, Leandro Lara e Sitaram Costa. Olho da rua consolidou-se com os dois últimos, que buscaram uma espécie de duplo em constante espelhamento e variação, além de um uso físico impactante. Christina segue investigando uma linha voltada também à questão urbana.

A pesquisa trabalha com três linhas: a) os diálogos físicos e a dramaturgia dos estados corporais; b) a composição no instante; c) a criação cênica e corporal no lugar específico (site specific performance). Num primeiro momento dedicamo-nos ao espaço urbano, especialmente às ruas e calçadas do hipercentro de Belo Horizonte. O outro estudo incide sobre os lugares não públicos, os espaços fechados etc.

Breve história de uma busca

Desde 2004 eu há vinha realizando ações e intervenções urbanas. Lembrava-me de apresentações que vi no Festival Internacional de Teatro de BH, que não poderiam ser entendidas mais como “teatro de rua”. Assim como já me aproximara de um teatro corporal e físico, procurava desestabilizá-lo a partir da Performance Art (a influência de Renato Cohen foi decisiva). Fiz algumas intervenções e ações poéticas que procuravam responder a essa inquietação. A primeira intitulava-se Cinco no Asfalto, quando cinco homens sentavam-se em cadeiras perfiladas na calçada de uma rua movimentada, com ações minimalistas. Depois, veio Cerimônia no Asfalto, com sete motocicletas que sonorizavam e iluminavam a ação na rua, incluindo uma transgênero sexual e um ator (Roberson Nunes) que surgia todo ensanguentado, girando no asfalto.  Mais tarde, montei Fudidos, uma montagem-ocupação que se deu na Rua Guaicurus, região do baixo meretrício em Belo Horizonte.

Passei a acompanhar com muito interesse os coletivos, agrupamentos, ativistas e artistas que se voltavam para as intervenções urbanas e ações no lugar específico: Conjunto Vazio, Obscena e o Movasse, para citar somente alguns. E quando estive à frente da Diretoria dos Teatros Municipais elaborei, dentro da linha de ação Arte Expandida, o projeto Laboratório: Textualidades Cênicas Contemporâneas. Com curadorias de Fernando Mencarelli e Nina Caetano, além da consultoria de Antônio Araújo, colocamos em movimento o fomento e o estudo das chamadas “dramaturgias da cena”. As ações visavam os diálogos com os espaços, no início com o próprio edifício teatral, depois com os “espaços encontrados”.

Os ensinamentos desse período podem ser sintetizados com a colocação que Antônio Araújo sempre realizava junto aos grupos e artistas participantes: “Se eu posso fazer a mesma coisa num palco, por que eu faria em outro lugar?”

Sentidos da rua

No Laboratório de Teatro Físico e Performance, passamos a estudar várias possibilidades de intervenção urbana. Partimos do esquema de tentativa e erro. Eu não queria trazer um projeto, um tema, uma questão, como havia feito das outras vezes.  Queria ver o que os próprios participantes descortinassem a questão: por que vamos à rua e a outros lugares públicos?

Fizemos algumas discussões também com Gil Amâncio, que havia realizado uma pesquisa desse tipo com alunos e alunas do Cefar, no ano anterior. Gil mostrou imagens das ações e levantou algumas questões: a) a necessidade de ressignificar os espaços da cidade através de nossas ações poéticas; b) a atenção na cidade como “cenário”  (no sentido que o lugar tem um campo de força, pois o que vai acontecer dependerá desse lugar), como “personagem” (a relação com as pessoas, que podem ser apenas observadoras ou até mesmo performadoras interagindo com a ação),   como “paisagem sonora”; c) a relação não imposta aos outros, que não dispõem de nossa liberdade de artistas; c) o campo de competências nos quais nos exercíamos, incluindo como lidamos com as competências que nos surpreendem nas ruas; c) e a necessidade de entender, sempre, nas composições, os elementos de fluxo e de jogabilidade. Um alerta: cuidado para não ser codificado. À pergunta usual “o que vocês estão fazendo aqui” ou “isso é teatro?” não responder diretamente, mas devolver a pergunta ao outro performativamente.

Em busca de um fio condutor

Então, começávamos, ao lado dos diálogos físicos realizados no estúdio, a ir diretamente com as perguntas que os corpos poderiam fazer, interagindo com a cidade. Algumas ações se mostravam potentes, outras sem forças que alavancassem um plano próprio de criação. Dito em outras palavras: que justificassem nossas ações em meio ao cotidiano das pessoas em locais de passagem e de trânsito intenso.

De início, descartávamos qualquer possibilidade de trabalhar com o regime espetacular. Investimos na criação de um meio: a quietude, os estados corporais e as gestualidades minimalistas. Começamos a transitar entre a escuta e a ação. Quando nos perdíamos, procurávamos dirigir nossa atenção para os nossos corpos e  entorno. A ideia era a de ser percebido sem imposições e, ao mesmo tempo, perceber e iluminar algo que estivesse no fluxo urbano. Depois, voltávamos à ação. O Teatro Físico como potência narrativa de um corpo manifesto Lúcia Romano), era um plano de expressividade que nos interessava.

Entendemos que o fio condutor – ou melhor, o leitmotiv – começava se mostrar: na Estação do Metrô, numa passagem, Chris, Leandro e Sitaram permaneciam muitos momentos em estado de quietude, usando roupas sociais, realizando ações minimalistas. As mudanças ocorriam sempre em função das escutas e dos estados corporais. Um de nossos lemas era: iluminar o outro, o transeunte.

As primeiras reações de pessoas que usavam a passagem de níveis, do lado externo (não submetido às leis da empresa administradora do Metrô), eram de usuários de um dos albergues da Prefeitura na região. Havia alegria e espanto – e isso era um sinal afirmativo. Um deles me disse: “Uma coisa mística, não?”

Será que estamos totalmente fora do campo da arte? A dúvida surgia em meio à essa recusa do espetacular. E a resposta veio de um dos vigilantes que, o tempo todo, olhavam  atentamente as nossas ações. Um deles, me percebendo, disse: – “Algumas pessoas que passam por aqui estão achando que eles (os performadores) estão em atitude muito estranha… Mas estou vendo que não há perigo para ninguém. Posso chamar isso de ‘teatro’?” Respondi que sim, pois era necessário proteger os performadores e evitar problemas. Então, pude ver que conseguíamos criar uma zona de indiscernibilidade entre a arte e o cotidiano, entre ação e escuta. Estávamos no caminho certo.

Intercessores

Primeiro, o trabalho de Andrea Maciel intitulado “Chão das cidades”. Trata-se de uma ação em que os performadores se jogam no chão e lá permanecem. Eles provocam uma modificação no cotidiano da cidade, dos seus fluxos, ao inverter as posições e posturas convencionais. Podemos chamar esse plano de micropolítico – não se trata de uma ação discursiva ou, ainda, de um espetáculo, mas sim de colocar-se em conexões díspares, provocando sínteses disjuntivas, inventando para si  convidando os transeuntes a  habitar uma duração.

O livro do Poro foi também, ao lado de outras leituras (Blanchot e O cotidiano), provou-nos novos olhares sobre as intervenções urbanas. Também a tese de André Mesquita sobre o Midiativismo, que seguimos ainda lendo.

Outras inspirarações vieram das ações do coreógrafo e bailarino Mário Nascimento, que participava temporariamente do Coletivo Gentlemen de Rua, numa intervenção em Belo Horizonte, no projeto “Horizontes Urbanos”.  Os performadores nos contagiaram com a disposição ao risco e a composição no instante, em meio ao fluxo da cidade. E o que nos tocava especialmente era o modo como Mário adentrava no que chamo de  uma poesia ao modo da ação. Nesta, as consequencias do que está sendo jogado configuram a poética. Tudo isso conectava com  com nossas buscas com o Teatro Físico.

Outro intercessor foi Samuel Beckett. Numa de suas novelas, o personagem é expulso de casa atirado à rua, do alto de uma escada:

“A queda portanto não foi muito grave. Enquanto caía ouvi bater a porta, o que foi reconfortante, no pior instante de minha queda. Pois isso queria dizer que não me perseguiam até a rua, com um pau, para me dar pauladas, à vista dos passantes.”

E então:

“Contentaram-se portanto, dessa ve, em me por na rua, e pronto. Tive tempo, antes de assentar na vala, de concluir tal raciocícinio.”

“Nessas condições, nada me obrigava a me levantar logo. Apoiei os cotovelos, lembrança curiosa, na calçada, descansei a orelha na palma da mão e comecei a refletir sobre minha situação, no entanto familiar.”

E me veio à mente a imagem da infância, no interior de Minas: um homem que eu conhecia, caído na lama, bêbado, olhando para o céu azul e as pessoas em volta rindo.

Buster Keaton também é uma das inspirações de um Teatro Físico que tenta dialogar com o patético das situações, sem falar na visão anárquica que ele possuía.

Armadilhas do caminho

O que nós mais evitávamos era estabelecer uma relação do tipo palco-platéia. Porém, por mais que você lute contra isso, esse polo atrativo retorna com mais força. Na minha avaliação, isso ocorre quando deixamos de buscar as multiplicidades, os rizomas e, principalmente, quando nossa atenção cai. Nosso objetivo é perceber-se nesse ato narcísico, esse motivo territorial confortante, e tentar parti-lo ao meio.

Quando as pessoas passam a seguir a deambulação, esse desejo de fazer para uma plateia, torna-se muito atraente. Em alguns momentos criamos o código: interagir  com os transeuntes, como se eles fossem personagens de um “drama” e, ao mesmo tempo, mostrar isso para os que nos acompanham pelas ruas afora.

A linguagem

Começamos, então, a explorar os nossos territórios e as consequentes desterritorializações: partituras com quedas, gestualidades que ligam céu e terra, recomposições de posturas e atitudes, e uma atenção flutuante no entorno e nos acasos.  E abrindo, o tempo todo, um meio de escuta, tornava-se possível desenvolver diálogos físicos entre os atuantes e as pessoas que transitavam pelas ruas. Surgia o Olho da Rua.

Porém, se não fosse a insistência,  coragem e generosidade dos performadores, nada teria acontecido.

Notas sobre algumas reações dos transeuntes

Um  jovem chegou até a mim, sem perceber que eu estava na “colado” na ação e diz: – Isso é muito interessante, ele olha para a gente e nos mostra como uma pessoa nessa situação (jogada no chão) olha a vida, a gente…  As reações são muito variadas, da alegria e do riso ao estranhamento, incluindo possíveis codificações (“é teatro!”).

Sartre Silva, aluno do Cefar que acompanhou uma das intervenções, escreveu um texto sobre as reações das pessoas, do qual reproduzo um trecho:

“A coisa que mais me fascina em intervenções na rua é a reação das pessoas. É isso que dá o teor dinâmico real ao “evento” e uma partitura que pode ser bem simples com 3 ou 4 ações, que se multiplicam em dezenas de ações. Um jogo interminável de ação e reação.

Sitaram e Leandro foram mais incisivos em relação a algumas pessoas, alterando completamente a rotina prevista por elas. Mas um número muito maior de pessoas, que não sofreram essa interferência direta, não conseguiu simplesmente ignorar o que estava acontecendo e acabou permitindo ter suas rotinas transformadas por tudo aquilo. Umas paravam por um tempo, outras se dispunham a acompanhar, e algumas simplesmente atravessavam a rua. Mas em geral, era nítida e audível a incapacidade de ignorar. 

Há os que tentam explicar: 

“Ah! É protesto sobre deficientes físicos. Olha lá.”

“Ele tá passando mal”

“Eles estão noiados sô. O cara fica doidão assim”

“Tá tendo todo dia. É protesto por causa da copa”

“São alunos da UFMG e tão agora ali com aquele Espaço 104, perto da Praça da Estação”.

“É uma maneira diferente de ver a cidade”

E de modo curioso, um dos performadores, Leandro, foi surpreendido na rua numa situação de não caracterização e jogo, por um transeunte que o reconheceu. E para a surpresa dele, o rapaz era um trocador de ônibus que havia passado no local de uma das intervenções e decidiu seguir todo o percurso, filmando no celular e postando no Youtube. As imagens são reproduzidas abaixo, junto com outras gravações nossas  (as três primeiras, seguidas de uma gravação feita por Ricardo Júnior).

Olho da Rua segue o seu percurso, procurando meios de aprendizagem, buscando desvencilhar-se tanto das armadilhas do espetáculo quanto da interioridade narcísica ou do diletantismo descompromissado com a barra pesada da vida urbana.

Vídeos –

Outras referências –

Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos: ações poéticas do Poro

– Obscena: rede colaborativa de investigação e colaboração – ocupação e intervenção

– Conjunto Vazio

O chão nas cidades. Por Andrea Maciel

Horizontes urbanos

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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