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A criação corporal de Kenia Dias

Kenia Dias na performance Lambe-Lambe

 

Um fluxo em estados corporais – assim posso situar as duas performances de Kenia Dias, Padedéu (com Ricardo Garcia) e Lambe-Lambe. E o que convoca a minha atenção, nessas duas criações, é o adensamento de uma experiência que posso, como observador e testemunha, compartilhar. Adentramos numa zona de turbulência, onde ocorre a estranha mistura de excesso e contenção. As paisagens vão se desdobrando a cada momento, chamando para um plano que é tão pessoal quanto impessoal. 

Padedéu: um homem e uma mulher

Nessa performance, criação sonora e corporal dialogam entre si. Ricardo Garcia estabelece na cena o seu equipamento de som, incluindo uma bateria. Instala também um espaço meio sala de ensaio, de estar e cozinha, na qual prepara um café e um sanduíche. Kênia está sentada numa cadeira. O que temos é o plano de dois artistas, um homem e uma mulher, envolvidos cada um com seus processos de criação.

E os dois processos são completamente diferentes um do outro. A começar pelos corpos e seus planos de inserção naquele espaço. Ricardo está apenas acionando seus dispositivos sonoros, enquanto prepara um lanche um cafezinho ao vivo, em tempo real. Kenia, ao contrário, concentra-se no dispositivo corporal, entregando-se a ele. Enquanto ele assume um ar blasé, relaxado, voltado tão somente para seus aparelhos, ela mergulha numa estranha apropriação de si.

Tais atitudes não parecem se misturar e, no entanto tudo acontece. Pois, se os planos de inserção dos corpos são tão heterogêneos, eles acionam entre si uma síntese disjuntiva. Veremos que o corpo sonoro estará dialogando com o outro corpo e vice-versa. O fluxo começa a jorrar. Kenia vai entrando numa espécie de transe. E Ricardo mantém seu ar tranquilo e cuidadoso. Posso imaginar um homem com seus afazeres e uma mulher que delira.

O transe de Kenia é preciso. Quero dizer que ela vai seguindo um fluxo rítmico que aos poucos vai desdobrando novas paisagens, gerando outras conexões. Posso dizer que se trata aí de uma criação em devir. Enquanto isso, Ricardo come seu sanduíche e compõe uma peça sonora. E essa composição será totalmente heterogênea: da mídia do computador, dos sons da cafeteria e outros, da bateria etc. E afinal, Kenia estará entrando num processo mais exaustivo, quando seu parceiro oferecerá um cafezinho. E ela irá incorporar esse elemento tão alheio ao estado em que se encontra. Temos a instauração de um plano patético. Uma mulher exaurindo-se e um homem tranquilo que lhe oferece, no meio de seu platô alucinado, um cafezinho!

Lambe-Lambe

Kenia realiza uma performance baseada numa pesquisa sobre os moradores de rua de Brasília. Aqui, nós adentramos numa duração com uma criatura que vai se desenhando pouco a pouco. Na performance anterior, a transformação se dava mediante ritmos e estados corporais, remetendo a uma conexão entre dois corpos. Nada de referencial se diz sobre eles, a não ser que um parece dedicar-se a tarefas, como tocar e produzir um lance, que produz sonoridades, enquanto tudo nos leva a crer que o outro é lançado num delírio.  Em Lambe-Lambe, não encontramos essa referencia direta que nos permita imaginar uma personagem, mas os estados corporais configuram uma existência tão furtiva quanto concreta.

Até o momento não sabia que a performance tinha por base os moradores de rua e que foi produto-processo de uma dissertação de mestrado. Mas o incômodo da criatura e de sua expressão singular estão ali. Um registro ficcional que me leva a me sentir na intimidade de uma moradora de rua. Obviamente que este sentimento me vem depois de saber e ler um pouco sobre a dissertação. Mas ele me parece estar ali, presente o tempo todo. Há uma série de constrangimentos sutis, de uma crueldade delicada, mas nem por isso menos violenta. Não poderia revelá-los aqui, pois estragaria o prazer (ou seria desprazer?) de quem poderia assistir a essa performance.

Temos sim um registro ficcional, de uma criatura que se expõe e se esconde diante de nós, num jogo com níveis de abstração e concretude ao mesmo tempo. Abstração de uma lógica das sensações, para pensar com Deleuze. Não há indícios narrativos que definem uma persona, um tipo, uma silhueta ou o que seja. Não há uma caracterização definindo o código de uma mendiga. E Kenia tampouco verbaliza indicações nesse sentido. Suas expressões vocais são pequenas interjeições, murmúrios. Não permitem ou não completam uma referência sobre persona, espaço representado etc. Temos algumas pistas que flutuam em suas significações. Mais, não sabemos.

Há todo um jogo sutil de mostrar e esconder, de brincar com sua própria nudez, mas de um modo que nos coloca, de imediato, comprometidos com o que olhamos. É como se ela nos pegasse num olhar que, paradoxalmente, nos oferece. E dissesse: eu vejo que você vê e juntos partilhamos disso. E acabamos por nos sentirmos expostos também. O que difere totalmente das usuais mostras narcísicas de partes do corpo, em muitos desnudamentos. Afinal, Kenia nos mostra, estamos na linguagem. Porém, noutro plano, naquele em que a vida sopra quente na pele dos signos.

David Pantuzza, num artigo sobre Lambe-Lambe, enfoca os aspectos pós-dramáticos da performance de Kenia Dias. Cito aqui um trecho da análise empreendida:

“Em Lambe Lambe não vemos personagem incorporado, mas sequências de situações corporais de acordo com ações que ora se conectam ora se desviam e se afastam. Ao longo dos vinte minutos de performance, vemos o corpo da intérprete passar por diversos estados alterados. Há oscilações na instituição de sentido, por isso, há mais provocação e menos significante. Se é uma dança teatral ou um teatro dançado não importa. O que é relevante é a pulsação que o corpo adquire, a revelação de seus potenciais. Por isso, trata-se de um processo teatral no corpo. Ocorre, portanto, a decomposição da intérprete e não a composição de personagem.”

David Pantuzza observa, então, que não extraía signos que pudessem caracterizar uma mulher mendiga. O que ele percebia era “um corpo conturbado, turbulento, convulsivo, deformado.” E como a revelação de que a pesquisa centrava-se em moradoras de rua era posterior à perfomance, David pôde dizer também que “em momento algum aparecia a mendicância explicitamente tal como estamos acostumados a ver nas ruas da cidade.”

Por fim, Kenia nos revelou, após a performance, o que presenciamos: em momento algum ela procura representar uma mendiga ou mesmo expressar algum sentimento relativo a isso. Seu foco eram os apoios físicos e não o conteúdo emocional ou afetivo do que estava rolando. E, no entanto, ela sofre as afecções de seu próprio jogo e nós vamos, juntos, nessa incômoda beleza.

Nesses dois trabalhos, lembro o que Joseph Beuys disse o que pediria a um performer: que ele nos mostre não seu narcisismo, mas sua ferida narcísica. O que exige maturidade, destreza e entrega. E isso não é pouco.

 

Performance Lambe-Lambe

 

Referências –

– Kenia Dias é performadora, coreógrafa, pesquisadora e criadora em artes cênicas.

– O teatro pós dramático e algumas reflexões sobre o poder na performance Lambe Lambe de Kenia Dias. Por David Pantuzza.

Padedéu no  Fita Crepe

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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