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Vazio e forma no ator compositor

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“Ó Sariputra, aqui a forma é o vazio e o vazio é a forma;/ tudo que tem forma é exatamente o vazio e tudo que é vazio é /exatamente a forma.”

Sutra do Coração da Grande Perfeição da Sabedoria (Índia, séc.1D.C.) Versão do Mestre Zen Ryotan Tokuda.

Eu andava fascinado com duas ideias que eram, obsessivamente, buscadas e exercitadas: os espaços e os vazios. Não só nas minhas oficinas de teatro, mas também em mim mesmo eu criava um laboratório para realizar experimentações.  Observava, além disso, os movimentos das artes marciais e as brincadeiras corporais das crianças (de repente, um mergulho rápido num espaço vazio que se abria…). Um dia, Jória Lima, que havia participado como consultora de dramaturgia em Fabulário me disse assim: – Vejo que você está buscando uma criação com uma outra coisa que não é comum na maioria dos exercícios de atuação teatral. Posso chamar isso de uma prática de espaços?

Foi então que eu entendi o que procurava. Algo que estava cada vez mais distante das modalidades do teatro de personagens dramáticas. Percebi também que eu não trabalhava mais com interpretação, mas sim utilizava outra coisa: a noção de composição – como já me alertara Gil Amâncio, músico e artista cênico, parceiro de muitas inquietações. São estudos compositivos, dizia ele. Outra pessoa notou que eu me aproximava da dança. Mas, então, teatro e dança têm realmente que vir separados? Interessei-me pela Performance, numa interface com o Teatro Físico.

Um dos exercícios básicos de composição,  que então passei a desenvolver, intitula-se Vazio e Forma. O nome vem do Budismo Zen, de uma citação do Sutra do Coração da Grande Perfeição da Sabedoria (Índia, séc.1 D.C.). O sutra, também chamado de Prajna Paramita, relaciona forma e vacuidade e sua mútua interdependência. 

Este foi, também, o nome da primeira disciplina optativa que eu dei no Curso de ArtesCênicas da Escola de Belas Artes (UFMG), como professor substituto, em 2002: Vazio e forma no ator compositor.  Somente três pessoas terminaram o processo, em tempos desiguais.   Como não havia “jogo teatral”, então, para muitos, como entender aquilo? Além do mais, eu já recusava a noção de que a corporalidade se destinava a ser um mero suporte para uma significação posterior. O corpo manifesto, como dizia Lúcia Romano, era o que me interessava.

Além disso, eu me inspirava em um dos capítulos do livro de Frijof Capra, O Tao da Física (1975). Capra relaciona a física quântica ao misticismo oriental, para o qual a matéria e o espaço vazio não mais se opõem e nem se excluem mutuamente.  O vazio, nessa perspectiva, não é um nada, mas potencialidade pura. Para as pesquisas em relação ao espaço, os vazios estão potencialmente cheios de desejo. Além do mais, tem algo da funcionalidade chinesa, como no Taoísmo, de um vazio atuante.

A oficina Vazio e forma no ator compositor teve também a ver com o livro   Matteo Bonfitto, intitulado O ator compositor  (São Paulo: Perspectiva, 2006). Ele falava do actante estado, que se distinguiria do actante persona e tipo. Sim, uma composição de estados corporais. A minha prática, naquela oficina, envolvia a improvisação estruturada em relações de atenção espacial e improvisações solo nas quais cada um criava composições corpóreas, a partir de exercícios de desequilíbrio. Assim que essas composições eram desenvolvidas, eu começava a dialogar com cada um, focalizando os vazios muito próximos do corpo. O resultado era uma sequencia de movimentos, aos quais se incorporava mais tarde uma vestimenta para o corpo e relacionava-se, ainda, com um objeto. A oficina permitiu-me, portanto, cuidar dessa pequena flor de vazio que nascia ali, embrionariamente, como possibilidade de linguagem cênico-corpórea.

Em Vazio e forma, as cartografias são trabalhadas a partir dos espaços muito próximos do corpo: espaços entre as pernas, entre um braço e as costelas, atrás nas costas, um espaço que sempre se move pelo corpo, que surge aqui, mas logo desaparece para ressurgir em outro lugar. E por assim adiante. O importante é a dinâmica, a vida dos impulsos, o fluxo. Deve-se evitar a forma blocada e o bloqueio da linha.

Este exercício teve, ainda,  influência determinante de uma prática extensa com Luciana Gontijo, que realizava um trabalho corporal com as atrizes do espetáculo Fabulário, no qual ela nos ensinou a dirigir a atenção aos espaços do corpo. Por sua vez, há nesse pensamento compositivo de Luciana, juntamente com a bailarina Margô Assis, num contexto de dança contemporânea, o estudo do Body Mind Centering. Além disso, eu havia praticado por uma ano e meio Aikido, com o mestre Ichitami  Shikanai: vazios nos golpes, vazios de intenções e espaços entre os corpos, vazio da mente que se une ao adversário para desviar de seu ataque e reconduzi-lo. Na verdade, ele não falava disso, mas eu via isso.

Alguns anos depois, após formular e definir uma sequencia de exercícios que passei a chamar então de Vazio e Forma,  deparei-me com a demonstração de Tadashi Endo, no Encontro Mundial de Artes Cênicas, sobre Butô, por ele denominada de Butô-Ma – um Butô dos espaços vazios, do entre. Foi importante para a pesquisa ver um bailarino do Butô apresentar um procedimento como o utilizado em Vazio e Forma. Tadashi Endo, inclusive, trabalhou essa prática de vazios com o Lume, gerando o espetáculo Shi-Zen, 7 Cuias, que estreou no Brasil em 2003. As composições envolvem, também, os espaços entre os corpos e entre corpos e objetos, imagens, etc.

Passo, também, para o exercício dos espaços entre também em relação a uma distância que pode ser facilmente superada num impulso único: caindo em direção a um corpo para tentar alcançá-lo ainda que não seja no sentido de um atletismo puro. Como se daria isso – os espaços entre – num atletismo afectivo? Através de uma afecção sofrida pelo performer em relação aos espaços que ele produz. A atenção é dirigida para o espaço, para deixá-lo expressar. Neste ma dos espaços entre os corpos ocorre o mesmo com o ma dos espaços corporais:  ator/performer se vê reagindo às forças (um espaço produzido) qque atuam sobre ele. Nisso reside o paradoxo do ator: ele é movido pelo objeto que ele mesmo aciona.

Mais Referências –

Estudos de composição cênica: uma abordagem. Por Luiz C. Garrocho

– Matteo Bonfitto: Espaço Performa

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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