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Performance e liminaridade: conversa com Marcelle Louzada

Uma boa conversa com Marcelle Louzada, acompanhada do músico Philipe Lobo. Marcelle agora mora em Fortaleza, onde estuda, prepara-se para o doutorado e trabalha com dança e performance.  Falamos de nossos projetos, estudos etc. Entretanto, predominou o assunto sobre os espaços das cidades, o corpo, o confronto com os padrões de comportamento e os modos de produzir significados, a estética e o real.

Marcelle contou-me que ela já havia realizado muitas sessões de dança, composição e improvisação em espaços públicos. Mas que não sentia força, sentido de apropriação, diálogo com a cidade. Não que trabalhar com movimento e criação ao vivo, em ambientes abertos, não fosse interessante. Mas ela sentia falta de algo. Só foi encontrar quando passou a condensar, posso dizer assim, uma corporeidade questionadora, capaz de produzir atritos, choques, rupturas. No dia Internacional da Luta da Não Violência Contra a Mulher, 25 de novembro, quando mulheres do mundo se encontram para discutir questões do gênero feminino, cultura e políticas públicas, segundo Marcelle, ela faz uma performance urbana bem agressiva:

 “Nesta proposta, resolvi me vestir com imagens e manchetes vinculadas a pornografia, buscando tensionar a questão da violência também para este tipo de exposição, tão difundida e divulgada pela mídia e vista com banalidade no cotidiano. Com esta roupagem, acrescentei a coleira de cachorro e o colar elisabetano, oferecendo-me aos transeuntes para um passeio pelas ruas da cidade. Desta forma, me colocava na posição de mulher-cachorra, mulher-objeto, tentando, através da intervenção urbana, promover rupturas e reflexões sobre esta imagem da mulher.”

Ela contou também sobre a última intervenção urbana, realizada por ela e um grupo de jovens, num Shopping Center em Fortaleza, na época do Natal. A ação foi realizada pelo Coletivo Emfoco, um grupo de artistas residentes do Laboratório de Artes Cênicas da Escola Porto de Iracema, que teveMarcos Bulhões (Grupo Desvio Coletivo, de São Paulo), como tutor do grupo n processo.

Difícil descrever a ação, principalmente porque eu não a presenciei, tendo apenas ouvido o relato: um desfile de performadores com o mascaramento de cabeças enormes, que depois de retiradas realizavam  agressões contra um boneco de Papai Noel trazido por eles (cuspiam  nele e depois, alguém urina em cima). Depois disso, foram expulsos do espaço pelos seguranças, sendo perseguidos por um grupo de Policiais Militares, dispostos a espancá-los até não poderem mais. O grupo escapou com vida, depois de buscar abrigo na garagem de um edifício residencial, quando o bando armado passa ao lado, sem encontrá-los.

Essa é apenas uma das ações empreendidas por Marcelle e parceiros. Já vem de uma longa carreira, apesar de jovem essa moça, dedicada à performance e à dança. Conversamos um pouco sobre essas incursões no real, as transgressões, as ações de risco, o confronto com a cultura de consumo e com o machismo etc. Na hora eu não me aventei sobre esse ponto: o fato de o grupo voltar-se contra um dos símbolos do capitalismo como religião, dentro de um espaço que é público e, ao mesmo tempo, privado.

Porém, o que assusta mesmo é a disponibilidade da Polícia Militar do Ceará de partir para a agressão total. Marcelle acha que em Belo Horizonte, por exemplo, a Polícia já se acostumou com os ativismos performáticos, sendo mais tolerantes a eles. Será mesmo?

Conversamos também sobre outros parceiros e parceiras: o Conjunto Vazio e o Agrupamento Obscena. Ambos, marcantes nessas operações entre poética, performance, intervenção urbana e ativismo. Passamos pelo tema da estética, da ação sobre o real, das intervenções urbanas.  Seriam propostas que teriam a ver com o conceito de teatralidades liminares, como visto pela pesquisadora Ileana Dièguez?

“Interessa-me estudar a condição liminar que reside numa parte dessas teatralidades atuais, nas quais se entrecruzam não só outras formas artísticas, mas também diferentes arquiteturas cênicas concepções teatrais, olhares filosóficos, posicionamentos éticos e políticos, universos vitais, circunstâncias sociais”

Uma das questões que me fazem pensar versa sobre o regime de signos que acionamos em nossas performances, intervenções e ocupações. Na imagem das cabeças embrulhadas em presentes, que desfilam num shopping, vejo algo que foge às capturas dos regimes de significação. Já a agressão contra o símbolo do Natal, pergunto-me se estamos mais para o lado de um regime significante. Além disso, penso que a imagem  daquelas cabeças  podem ter produzido rupturas em relação às convenções do espaço (comercial e de lazer relativamente programado).

Marcelle contou que durante um bom tempo os seguranças não sabiam como reagir em relação àquilo. Se isso ocorreu, então imagino que temos aí um espaço de ambiguidades, pertencentes a outro regime de signos, mais propriamente a-significante (como propõe Félix Guattari). No entanto, a ação urinar no boneco-símbolo do Natal (foi uma mulher, o que gera outro tipo de constrangimento, apesar de não revelar o possível atentado ao pudor, caso fosse homem), não passaria para o regime significante?

Os seguranças, posso conceber, sabiam então do que se tratava agora: a performance produziu consequências pragmáticas. Diriam alguns que não estamo mai no âmbito de uma poieisis.  Porém, há uma ambiguidade aqui: a pragmática e a poética se misturam completamente – e talvez seja essa a intenção do grupo.

Vendo depois a imagem que reproduz esse momento – em que a performer urina no boneco de Papai Noel  – outras perguntas se colocam. Será que o acontecimento – no lugar de obra artística – não seria justamente a realização desse confronto? E que isso era esperado e provocado pelos performadores? Sim, a ação foi codificada pelos agentes da segurança local. No entanto, a pergunta é justamente esta: os performers levaram em conta, na tática em curso, essa passagem para o risco pragmático, com as consequência possíveis? E, ainda: houve aqui um fechamento do código? Ou, ao contrário, de-se a súbta abertura de mundos e a passsagem para o plano a-significante?

São perguntas e questões que não formulei para Marcelle durante a conversa. Vieram depois.

GrupoFoco_Fortaleza1

A imagem acima não deixa dúvidas sobe a contundência da performance. Primeiramente, pelo contexto: o shopping center. Não é uma cena de ilusão dramática. No entanto, não se trata mais do mundo real, que é o mundo de compras e lazer daquelas pessoas. E o que faz esse transporte – essa abertura de mundos – é, entre outros fatores, a caracterização, o mascaramento: uma mulher com a cabeça que é um presente. E esta mulher levanta a saia, mostrando suas pernas, urinando no símbolo corrente do Natal. Então, não temos mesmo, somente, um mundo. Temos outros mundos imbrincados neste mundo.

E o risco pragmático (transgredir o espaço e sofrer as consequências reais desse ato)) mistura-se ao risco poético (o de produzir imagens que são frestas ou rachaduras no cotidiano). Por isso, Ileana Diéguez pode falar em liminaridade – pois a ação não é uma mera suspensão do cotidiano, através de uma bela imagem. E no entanto, a imagem é bela. Pelo menos vista fora do contexto. E para voltar ao tema dos regimes de significação, percebo aqui a possibilidade de uma montagem a-significante.

Depois falamos das invasões que os grupos de jovens da periferia têm realizado nos shoppings de grandes capitais. Os tais “rolezinhos”, reprimidos com intensa violência por parte das Polícias Militares, quando não há roubo e nem qualquer violência. E que nos desafiam a pensar o que está acontecendo.

A conversa é infinita. E tampouco resume os caminhos de Marcelle Louzada. As perguntas seguem. Melhor vê-las também em ato, quando nos colocamos em riscos poéticos e pragmáticos: em performance.

Referências Corpo Paisagem – de Marcelle Louzada – Grupo EmFoco –  Marcos BullõesPorto Iracema das Artes – Escola de Formação e Criação do Ceará –  Philipe Lobo

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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