Fui ver o solo de Silvana Stein, Discurso do coração infartado, que tem direção e dramaturgia de Ricardo Júnior e da própria atriz. Sai tocado pelo cuidado, pela técnica, pela sensibilidade e beleza deste trabalho. Além disso, não é todo dia, também, que podemos estar ali, diante de uma artista que está em pleno processo de amadurecimento – o que, para nós, significa verter a flor com a maestria de artesão. E que se entrega de corpo e alma através de uma linguagem. Aliás, lembro mais do que nunca, aqui, de Maurice Blanchot: a linguagem é o lugar da atenção.
Entregar-se, é preciso dizer mais uma vez, não é estrebuchar-se. Dario Fo, o grande dramaturgo e diretor, diria de outro modo: um bom ator é como um bom nadador: não joga água fora da piscina! Silvana nada com maestria.
A cena nos apresenta apresenta um velho ator cômico, que possui uma imensa paixão pelo personagem Hamlet de Shakespeare. Um ser solitário, insatisfeito com sua carreira de bufão, que sempre desejou ser um ator trágico. Silvana nos traz uma pesquisa que ela vem elaborando em torno do universo masculino, agora, como ela diz, com um personagem velho. A parceria com Ricardo Júnior, que vem do cinema, mas com vários percursos pela criação cênica – algumas delas em que eu tive a alegria de compartilhar – é preciosa e se traduz numa preciosidade. Silvana diz que o desejo de trabalhar com Ricardo surgiu quando assistiu ao curta Permanências, que se passa antigo Conjunto Habitacional do IAPI, em Belo Horizonte. Um lugar os velhos constituem uma grande parcela dos habitantes. Curiosamente, Ricardo realizou, além desse curto, uma série de experimentos sobre os velhos do IAPI, buscando um trabalho ligado ao plano sequência e à duração.
No plano da criação da atriz, eu vejo aquilo que Gordon Craig, um dos mais provocantes artistas do início do século XX queria para a arte da atuação: a marionete. Silvana trabalha com uma arquitetônica oculta, estruturada sobre a marionete. Não que a atriz tenha intencionalmente montado uma marionete. Mas sim que a linguagem que ela articula passa por esse lugar. E o que é mais importante: a técnica, que ela demonstra com apuro, não é nenhum narcismo, mas um elemento que potencializa o acontecimento cênico. Isso não é pouco. Uma das cenas mais belas, para mim, sem falar nos infartos, na interpretação de Shakespeare, é o momento em que cobre o rosto com um lenço.
Há uma pesquisa também aqui não só sobre o clown que é o velho ator representado, mas também sobre o clown que a atriz exercita. O que nos faz transitar entre um lirismo que se dá no espaço interior da cena e um lirismo que se apresenta num diálogo com o público. No plano da encenação, de caráter minimalista, uma proposta de cortes cinematográficos que aparecem em corredores de luz, e em deslocamentos recortados. Há traços que vão de Kantor, Robert Wilson e Beckett. As intervenções sonoras de Felipe Zenícola criam um diálogo com a com a atuação de Silvana, potencializando sua linguagem, além de criar outras camadas de dramaturgia.
Vou ver de novo, pois além de ser belo, há inda outras coisas que Discurso do coração infartado me provoca a pensar.