Domingo, de Cida Falabella, ocorre na casa da atriz/performadora, no Bairro Serrano, em Belo Horizonte. Porém, pelo menos para mim, a experiência já havia se iniciado antes. Pois uma coisa é deslocar-se em direção a um espaço destinado às artes, outra é ir ao espaço encontrado. No caso, aquele em que uma pessoa habita. Principalmente porque a casa – a morada – não foi esvaziada da ocupação cotidiana, e então transformada pela ocupação artística. Pelas informações anteriores, sabia que adentraria no espaço real de uma vida. Mas o que isso significa?
A cena se inicia com os convidados – pois esse tipo de cena é antes de tudo um convite – dispostos no jardim e quintal da casa, quando a atriz/performadora está de pé, próxima à parede do fundo, num gesto de entrega. E ali, daquele lugar, vocalizando um texto poético e introdutório, ela abre o encontro.
Momento difícil. Tanto para quem faz o convite quanto para quem convida: o lance dos dados é puro risco. Mesmo que o gesto seja o minuciosamente preparado – naquela hora, é sempre o novo do acontecimento. Pois que é necessário romper uma inércia – a do mundo em que nos encontramos. Porém, curiosamente, não para ir a outro mundo – pois é dentro dele que Cida Falabella irá cavar e desenterrar, literalmente – a poesia dessa cena.
Numa parceria com Denise Pedron (artista e pesquisadora da Arte da Performance) que assume a direção de uma cena performativa, Cida navega entre lembranças, realizando no lado externo da casa o que ela chama de ritual de cura. Há momentos em que se adensam os traços performativos – em que se chamam as forças a si (para lembrar a pesquisadora cênica Ileana Dièguez) – e os traços líricos (no sentido de que fala Hegel, como sendo um transbordamento do eu poético, ao lado do dramático e do épico – que de certo modo também comparecem).
Num momento, uma torrente de ações corporais e vocalizações poéticas, no áspero do terreno, me remetem aos enlaces e desenlaces de uma vida. As duas trilhas não se explicam, elas se conjugam – observo que são independentes – e ao mesmo tempo se misturam num vagalhão de sensações a que sou arremetido. Há o contraste suave e tenro de um vestido branco, que foi desenterrado. Diria que a solidão, um dos temas/personas da ação, gostaria de tê-lo vestido. Mas, aí é que a cura pode ocorrer: ele se desfralda emblemático para quem quiser/puder nele se ver. Depois, a atriz/performadora começa a regar as árvores e as mudas do quintal. Assume um tom coloquial. Introduz-nos aos hábitos de quem vive naquela casa.
Pois, como diz Cida Falabella numa entrevista, se há uma personagem nessa cena performativa, esta será com certeza a casa em que ela mora com sua filha, com dois gatos (um deles, que surgiu de repente) e as sensações que entretecem, dia a dia, um viver. Em sombras e luzes.
Em seguida, entraremos no interior da morada. Cida prossegue com o convite, fazendo com que adentremos mais naquele mundo. Surge a solidão, uma persona invocada e corajosamente assumida, tornada convívio. Em cortes rápidos outras personas aparecem – da loucura (e do medo dela), da melancolia entre outras. Ela atua – diria, representa. Porém, isso faz parte da conversa, enquanto troca figurinos, revela outros sonhos, amores e poemas encarnados.
Então, passamos uma tarde de domingo com Cida Falabella. Mas, com quem mesmo? Com a atriz e sua casa, sim. Com as lembranças de uma vida, certo. No entanto, eu não posso mais dizer que conheço Cida Falabella (como eu julgava antes de entrar na casa).
Na verdade, desconheço completamente. Não porque ela mostrou outra faceta de uma personalidade complexa (qual não seria?). Ou porque tive acesso a algo revelador, na intimidade da sua casa. De fato, o íntimo foi convocado, mas trouxe antes o que lhe é avesso. Pois, tomando café e comendo bolo, vendo o dia se desfazer, ainda sentindo a presença dos fantasmas que ali transitaram, eu também me desconhecia num desconcerto operado por aquele acontecimento cênico.
Depois vem a despedida. Agora que escrevo, vem o desejo de ter de volta aquelas sensações e imagens, que tremulam na minha memória, que me deixaram desassossegado.
Poderia ser dito que Domingo é uma criação confessional. Além disso, uma atriz falaria em nome do outro – a personagem – quando a performadora falaria de si mesma. Não é assim que Patrice Pavis diz? A primeira nos remeteria à ficção, a segunda ao cotidiano, ao vivido concreto e real. Não entendo que isso se dê por resolvido, pois o que seria o “eu” do artista, nesse caso?
O escritor Silviano Santiago faz uma distinção que me parece mais fecunda: entre o confessional e o autobiográfico. O aspecto confessional seria “a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros”. Guarde isso: “os únicos verdadeiros”.
Já o autobiográfico teria mais a ver com um processo de “ficcionalização do sujeito” e de “autocriação”. Silviano Santiago toma o cuidado para não normatizar ou deduzir simplesmente dos estudos literários o tipo de procedimento criativo em que se vê envolvido. Diferentemente, então, do confessional, no autobiográfico se daria, numa apropriação que ele faz de Foucault, uma “ressemantização do sujeito pelo sujeito”. Pois que se daria uma contaminação entre a subjetividade criadora e o vivido, resultando numa hibridização, diz Santiago. Ele conta que lançaria mão de “subjetividades similares” às que são vividas por ele, para processar essa invenção ficcional.
De fato, há um despudor na cena. Não poderia ser de outro modo, pois nela um corpo se expõe diante de outros corpos. Disso sofre qualquer atriz e performadora – ou deveria. Claro, depende do grau em que esse corpo se manifesta, menos ou mais ancorado num referente do tipo máscara/persona; O aspecto intimista também está ali: entramos numa casa como ela é – apesar dos preparativos. Como também a performadora/atriz se refere, explicitamente, à melancolia, à solidão, ao medo de enlouquecer. Aliás, o nome do blog de Cida é A louca sou eu.
O modo como o convívio é configurado, principalmente pelos convidados, no quintal e jardim, me chamou a atenção também. Afinal, essa é uma cena que ocorre em um espaço encontrado. Na qual há sempre o duplo foco: na cena e o lugar ao mesmo tempo. Também variando em graus. As pessoas trazem, consigo, o hábito conservador de colocar sempre a atriz/performadora num palco e à uma certa distância. No aberto do acontecimento, em que os lugares não estão previamente definidos, a insegurança leva à manutenção do conhecido.
O que ocorreria, por exemplo, se a atriz/performadora conduzisse as pessoas a se localizarem em pontos diversos do quinta? Claro, esse é meu desejo sobre essa cena/acontecimento que tanto me tocou. Soaria um pouco artificial? Talvez não. Seria antes produzida uma espacialidade em que os convidados também se veriam – em que o convívio – no caso enquanto paisagem, subisse à esfera do acontecimento. Já na parte interna da casa isso muda um pouco, pois sentamos nos lugares dos convidados, na sala de estar – então já estamos dentro da cena. Pois me interessa essa pesquisa: a espacialidade praticada pela encenação.
Enfim, aquele Domingo se esvaneceu. Mas se fez inscrição na memória. Vontade, sim, de ir a outros encontros desses com Cida Falabella. Fico, então, com essa citação de Michel Foucault: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo”.
Referências –
- SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar.
- Blog de Cida Falabella: A louca sou eu.