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Estelinha by Starlight e o teatro underground mineiro dos anos 70

Uma família suburbana, um porão e um grupo gay

Primeira metade dos anos 70. Fui convidado para assistir a um espetáculo que eu não poderia perder: Estelinha by Starlight. A direção é de Ronaldo Brandão, um crítico de cinema que se dedicava cada vez mais ao teatro. No elenco atuavam Luís Otávio Brandão, seu irmão, Geraldo Bonifácio,  Deuslene Mattos e o próprio Ronaldo.

No caminho, Eid Ribeiro, que fizera o convite, preparava-me para o que iria assistir: algo muito distante do teatro até então praticado. O espetáculo acontecia no porão de uma casa, no Bairro de Santa Efigênia, em  Belo Horizonte. Os atores moravam lá, eram gays e a cena trazia vestígios dos embates existenciais e ideológicos dessa opção.

Entramos. Era uma pequena sala. Nenhum cenário ou ambientação especial. Sentamos num colchonete ao nível do chão com almofadas, muito característico, na época, do despojamento underground. E começam as ações. Dois atores que faziam papeis femininos entravam em cena: Luis Otávio era a filha e Geraldo Bonifácio a mãe. Descobri, aos poucos, que a moça atraia os namorados para que a família pudesse matá-los, fazer pastéis de carne e vendê-los na vizinhança.

Metalinguagem

Em determinado momento entrava Deuslene, de modo triunfante, que colocava um disco na vitrola e dançava. Lembro-me de poucas coisas, mas fiquei tão envolvido quanto suspenso no meu juízo estético. Que teatro era aquele que acontecia ali, diante de mim, num cenário em que eu, como público, estava dentro dele?

Mais tarde, Eid Ribeiro comentou ser o espetáculo um trabalho de  metalinguagem: eles encenavam o próprio sofrimento e, de dentro e de fora, o comentavam. Mas sem o viés de um distanciamento convencional. Ou seja, explicitado em quebras de personagens, em epicização da fala etc. No entanto, havia uma ironia e uma autoexposição que se misturavam. Você não sabia até onde a encenação tinha a ver com as vidas pessoais dos atores. Ou se eram somente  as impressões geradas pelo papel. Na verdade, algo de invisível sobre as primeiras se fazia visível sobre as últimas, mas raspado com uma velha faca afiada de cozinha. Luiz Otávio, especialmente, me impressionava muito sobre esse aspecto. Ele mostrava o que sofria, mas o que sofria era um comentário do que mostrava. E o tom de comédia do texto era tragado por uma violência crítica do universo kitsch de uma família suburbana de classe média.

Não havia nenhum desespero pessoal na atuação. Pois, como diz Peter Brook, em cena a maior confissão pode ser a maior falsidade. Você via maestria, apesar das drogas, é claro. Porém, não se notava esse “derrame emocional”, como é muito comum quando se quer expressar uma ferida íntima. Esmero técnico, jogo e deboche expressando uma relação sutil entre as paixões e os signos teatrais.

Outro modo de atuar: a nervura dos corpos expostos

Em contrapartida, não havia em Estelinha by Starlight aquele modo de atuar  somente “do ombro para cima”, como era vigente no teatro, e mesmo em grande parte do teatro político, porém discursivo, da época.  Um dos resultados disso era a famosa “voz empostada”.  Não veja nisso um julgamento dos trabalhos interpretativos mais realistas, principalmente aqueles que mostravam uma retórica contundente. Pelo contrário, num cotidiano de poucas opções existenciais e estéticas, vivendo sob a ditadura militar e a hegemonia da televisão, com toda uma libido reprimida da classe média grudada nos aparelhos de suas salas de visita, o teatro era um misto de lugar sagrado e de arena viva e real. Era também um espaço de formação política e intelectual. Estelinha, por sua vez, sob a direção de Ronaldo Brandão, instalava outra realidade: marginal, sem composturas e de uma poética aguda.

Importa, porém, que se faça a seguinte distinção: aparecia ali algo totalmente diverso na encenação, no modo de atuar, na relação com o público e, por fim, no entendimento do que pode ser uma experiência de teatro.  Havia, claramente, uma aposta em conteúdos marginais, que estavam fora da racionalidade e dos modos hegemônicos de se colocar no mundo. Toda uma nervura dos corpos expostos, que não são apenas suportes de um texto literário.  Eid Ribeiro, aliás, já era um diretor e um encenador que iria renovar o teatro mineiro, trazendo uma carnalidade para a cena, fazendo do ato teatral uma explosão contida, um rito assassino e imemorial. Ronaldo Brandão, com aquela montagem, adentrava nas regiões mais sombrias da alma, expondo tanto a fragilidade dos seres ficcionais quanto a dos corpos.

É necessário contextualizar a rebeldia de Estelinha by Starlight, na direção de Ronaldo Brandão. Este diretor, influenciado pelo cinema e apaixonado por Brecht, já havia apresentado espetáculos cênicos de visualidade, cenografia e interpretação, com alguns traços de lírico e épico (sem ser discursivo). Exemplo disso foi Baal: num cenário construtivista realizado por Raul Belém de Machado, você tinha elementos de luz, volume e poesia, assim como elementos que poderiam ser creditados ao plano de uma narrativa visual. Mas em Estelinha, assim como em Dorotéia, de Nelson Rodrigues,  que realizara depois, a aproximação entre vida e teatro se fazia, como em muitas criações cênicas da época, mais próxima e, também, por vias complexas. Nesta última peça, apresentada no palco do Teatro Marília, atores gays, sob o efeito de drogas, interpretavam as mulheres, sendo que Ronaldo fazia a tirana Dona Flávia. Todos utilizavam máscaras chinesas, empunhadas pelas mãos. Ao falar, usavam a máscara na frente do rosto, tirando em seguida. Havia a impressão de que estávamos no convés de um navio  que oscilava a ponto de virar.

No teatro realista não cabe a um ator viver sua opção homossexual, não sendo viável fugir ao aspecto interpretativo dos papéis, sob a pena de ser um mau ator. Com Ronaldo Brandão e sua trupe, no período que cobre a década de 70, a homossexualidade era também tematizada, como dado concreto e matéria cênica, sem tornar-se necessariamente assunto ou tema. E isso ocorria numa época em que a “cultura do desbunde”  convivia com uma violenta repressão. O grupo de atores relatava, muitas vezes, agressões verbais e físicas sofridas nos bares da cidade, bastando para isso somente a presença assumida nesses ambientes. Sofriam a violência tanto do regime e da polícia, quanto dos seus “iguais”, isto é, das pessoas comuns que frequentavam esses lugares.

Faz-se necessária uma pausa para falar de Geraldo Bonifácio. Era um ator estranho. Na vida real, digamos assim, era um enfermeiro e levava no pescoço um crucifixo e vivia uma paixão obstinada por Marylin Monroe. Considerava-se a própria. Há um filme de Paulo Laborne sobre Geraldo travestido de Marylin. E possuía um tempo lentíssimo. Estelinha by Starlight, na direção de Ronaldo Brandão, era algo inusitado: uma mistura de  brutalidade e sublimidade musical e cênica. O que me vem à mente é o feminino terrível de que fala Artaud.

Depois das cenas na sala de visitas, fomos conduzidos a um quarto. Ronaldo Brandão era o pai e  estava com as calças arriadas até metade das pernas, com uma máscara de gorila. Uma cena que, no mínimo, constrangia. Você estava num quarto, com mais algumas poucas pessoas, diante de um corpo naquela situação.

Um teatro no “lugar específico”

Era o que chamamos hoje de um “teatro no lugar específico”, ou de “teatro no espaço encontrado”. Um diálogo com a materialidade cênica que passa a fazer parte da linguagem. O  teatro como lugar de encontro, no qual um ato poético se dá diante do público, no caso quase à “queima roupa”. Todo um contexto de experimentação se dava ali, em Estelinha by Starlight.

Num teatro dessa natureza, você não consegue dissociar o lugar da apresentação da textualidade cênica. Talvez esta não fosse uma preocupação de Ronaldo Brandão. Mas, de fato, a linguagem estava posta. Não é que o texto literário se modificava, mas sim que a encenação deixava de ser totalmente deduzida deste. Daí a importância e o aspecto inovador desse “teatro no lugar específico”.

Tudo aquilo me impressionou muito. Nunca imaginaria que poderia haver um teatro fora dos palcos. Quanto mais uma cena realizada dentro de uma casa, no mesmo lugar onde moravam os atores e que pudesse ter algo com a vida das pessoas. Você entrava num espaço íntimo, privado, mas que era também público. Ali, acontecia uma encenação. Observo que não era tanto a história que me prendia, mas a proximidade, o fato de estar dentro do cenário, a presença daqueles corpos e gestos, a poética das falas, enfim, toda uma concretude exposta. Enfim, toda uma duração compartilhada.

Proibição

O texto de Estelinha by Starlight é de Vicente Pereira (1950-1993 ) que, além de dramaturgo, foi cenógrafo, figurinista, ator e artista plástico. Colaborou em diversos programas de TV e escreveu roteiros de cinema.  Suas peças e esquetes expunham aspectos kitsch da cultura e da classe média brasileira, misturando melodrama e comédia popular. Faço observar que a Enciclopédia Itaú Cultural, de onde os  dados  sobre o autor foram tirados, necessita de uma pequena correção: Estelinha não permaneceu inédita, tendo sido encenada, em condições marginais,  por Ronaldo Brandão em Belo Horizonte, no ano de 1976. De fato, talvez tenha sido uma temporada tão curta e marginal  que não possua qualquer registro oficial. Inclusive, porque foi proibida.

Depois da apresentação, sentamos e conversamos com o elenco e o diretor. Assim mesmo, no porão de uma casa, literalmente no mundo underground, debaixo da ditadura, falando e trocando ideias sobre o que havíamos assistido. Lembro-me que, na conversa, Ronaldo estava buscando uma experiência radical do teatro. Afirmou que  o teatro vigente em Belo Horizonte era um “teatro branco”. Ele queria um “teatro negro”.

Então, a peça foi proibida pela censura da ditadura militar e o espetáculo, em decorrência ou acréscimo, também foi impedido. Ronaldo e trupe ainda se apresentaram em casas de amigos, uma média de doze vezes. Mas, devido à proibição de exibição pública, não puderam seguir adiante. Acabou ali, no porão de uma casa dos anos 70, a vida de Estelinha by Starlight, com os seus pais, seus namorados assassinados e a luz mitigada, no ambiente de uma sexualidade domesticada e doentia de uma classe média conformada a tudo, mas  enlouquecida.


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Teatro das figuras sombrias: Armatrux e Eid Ribeiro

armatrux no pirex

Maestria

No Pirex, novo espetáculo do Grupo Armatrux (Belo Horizonte) e Eid Ribeiro (direção), povoa o palco de figuras e sombras, buscando um humor mórbido, num teatro sem falas. Mas o que me chama a atenção, além da competência do Armatrux e da “carpintaria” teatral de Eid (aliás, um termo que andou meio desaparecido), é a questão desses actantes-máscara, segundo o estudo de Matteo Bonfitto (O ator compositor). E, por conseguinte, como o ator configura esse universo. Interessa, sobretudo, lançar um breve olhar sobre a compreensão do teatro  e do ator sobre a qual Eid Ribeiro trabalha, ao recortar essas figuras e sombras.

Não faço aqui uma análise ou mesmo crítica de espetáculo, aliás, belo e competente, como o são as criações de Eid Ribeiro, sem falar no Armatrux. Eid: um mestre de sua arte. E cada um que seja mestre do seu caminho. Porque, como diz uma expressão Zen, “a sabedoria dos outros não te ajuda em nada”. A maestria de Eid é uma vida dedicada ao problema que arrisco chamar de “metafísica” teatral e cênica.  Por que chamar de “metafísica”? Porque Eid não faz simplesmente teatro, como se diz, por uma opção profissional apenas. Esse modo legítimo de se posicionar socialmente, mas que se resume, muitas vezes, a uma distinção. Como dizia o poeta e ator Hélio Zolini,  Eid “arrasta consigo a velha lona do circo”. E junto a esta, uma visão de mundo. Perguntamos, então: qual a relação entre essa “metafísica” e  sua “técnica”?