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Nuvens de Chumbo: vestígios do (in)visível e do (in)dizível em cena – por Yan Brumas

Yan Brumas Balgárd é ator, intérprete musical, pesquisador em Artes e História, Diretor e produtor de espetáculos cênicos. Neste texto ele apresenta um ensaio crítico sobre a peça Nuvens de Chumbo, encenação de minha autoria e colaboradores(as), para a formatura do Curso Técnico de Ator do Centro de Formação Artística e Tecnológica da Fundação Clóvis Salgado – julho de 2025.

Imagem de Paulo Lacerda

Um teatro de formação pode, por vezes, surpreender pela ousadia com que enfrenta esferas complexas da linguagem e da história. É o caso de Nuvens de Chumbo, espetáculo de formatura do Curso Técnico em Arte Dramática do Centro de Formação Artística e Tecnológica (CEFART), da Fundação Clóvis Salgado, apresentado em julho de 2025, na FUNARTE-MG. A montagem toma como ponto de partida memórias da ditadura civil-militar brasileira, evocando-as por meio de uma dramaturgia fragmentária, imagens poéticas e uma fisicalidade ancorada no treinamento do ator. O título já anuncia uma atmosfera carregada, não apenas de sombras e pesos históricos, mas também de inquietações políticas, afetivas e pedagógicas.

Ao assistir à peça, minha reação imediata foi de suspensão: senti-me atravessado por sentidos que se insinuavam, sem jamais se explicarem inteiramente. Voltar ao CEFART – instituição onde também fui formado – para acompanhar uma turma em sua fase de travessia carregava um significado simbólico. Constatei, ali, mais uma vez, que a criação artística pode se tornar não apenas ato de memória (especialmente quando ativada por acontecimentos traumáticos da história), mas também um exercício de elaboração crítica e formação ética. Minhas primeiras impressões prenunciavam: o passado ainda pulsa, e é preciso convocá-lo à cena, mesmo que a fala falhe, mesmo que reste apenas um gesto, um som, ou um olhar.

Imagem: Paulo Lacerda

A encenação tem dramaturgia assinada por Fabrício Martins, desenvolvida a partir de um processo colaborativo com o grupo de formandos, conferindo à obra um caráter híbrido entre criação orientada e elaboração coletiva. Luiz Carlos Garrocho, um dos professores mais longevos e influentes do CEFART, reconhecido como mestre por diversas gerações de artistas formados na instituição, dirige o espetáculo, com assistência afinada, atenta e contundente de Paulo Rocha. Em sua fala no programa impresso, Garrocho menciona três pilares que sustentam a montagem: a temática (a ditadura e seus espectros), os aprendizados do corpo (a escuta como forma de relação com o outro) e a linguagem (como força de composição e transformação). Sua evocação pessoal de 1964 – quando, ainda criança, testemunhou um episódio de repressão em Belo Horizonte – situa o trabalho em uma zona entre a memória íntima e a política pública. Essa abordagem insere o espetáculo numa perspectiva crítico-social, em que a arte se compromete com os impasses do presente sem renunciar à elaboração poética.

Imagem: Paulo Lacerda

A materialidade da cena é multifacetada, tanto pelos elementos visuais e pela trilha sonora original quanto pelo conjunto de forças em conflito que cada personagem carrega. Em cena, seis figuras, que se apresentam como corporificações de fantasmas, compõem a arquitetura narrativa da peça: Lina, a guerrilheira; Aurora, a filha; Dr. Ney, o militar; Nó Cego, o policial; Beto Canivete, o bicheiro; e Beatriz, a mãe que perdeu o filho. Suas trajetórias se desenrolam em um espaço-tempo suspenso, onde passado e presente se sobrepõem.

Um dos aspectos mais impactantes é o uso das projeções de vídeo, criadas por Hilton Rocha, que operam não apenas como ilustração, mas, sobretudo, como extensão do campo dramatúrgico. Imagens de corpos, paisagens, reflexos e registros documentais surgem ao fundo, criando camadas de sentido que ampliam o que está posto em cena, instaurando zonas de deslocamento no espaço. Nota-se, ali, uma influência estética dos quadrinhos (linguagem com a qual Hilton também transita como artista visual) especialmente na composição dos traços gráficos, no jogo entre claro e escuro e na atmosfera noir que permeia algumas passagens dramáticas

A peça se constrói sob uma iluminação esbranquiçada e quase contínua, que evita grandes contrastes. Ainda assim, não se trata de uma luz homogênea: ao longo da temporada, foram sendo evidenciadas zonas de sombra e penumbra, criando direções de foco e nuances no campo visual da cena. Essa escolha contribui para uma atmosfera de exposição prolongada, destacando o fato de que os personagens permanecem em cena durante toda a montagem. Tal opção sugere uma convivência de temporalidades, como se memórias e corpos compartilhassem o mesmo plano simbólico, sem hierarquia entre as histórias. Por outro lado, a visibilidade constante pode, por vezes, atenuar a afirmação dramatúrgica de trajetórias individuais. Trata-se, portanto, de uma escolha que simultaneamente propõe e tensiona o equilíbrio entre o coletivo e o singular, entre o compartilhamento do espaço e o desejo de distinção de cada figura.

Imagem: Paulo Lacerda

Nuvens de Chumbo estrutura-se, assim, em camadas: personagens atravessados por lembranças, objetos e presenças físicas que retornam como arquivos empoeirados, fragmentos corporais e vocais que se entrelaçam com imagens projetadas. Cada ator defende um personagem específico, do início ao fim, estabelecendo uma costura dramatúrgica que respeita a individualidade das figuras em cena, mas sem renunciar a uma tessitura coletiva. A performatividade dos intérpretes é orientada por vetores físicos precisos, que remetem às práticas do “teatro físico” e aos jogos de atenção e energia propostos por Garrocho, em diálogo com encenadores como Jerzy Grotowski, cuja pesquisa do gesto encarnado como “veículo de forças” se entrelaça a tradições orientais, nas quais o ator se converte em canal de pulsão interior.

A estrutura formal da montagem, sustentada por um roteiro de ações corporais cuidadosamente desenhado, oferece base sólida para o jogo cênico, aqui orientado também por Sitaram Custódio. Contudo, por vezes, observa-se certa mecanicidade por parte de alguns intérpretes, como se a fisicalidade proposta ainda não estivesse plenamente incorporada, não tivesse se enraizado em uma organicidade própria. Esse aspecto aponta para um desafio que cabe aos próprios estudantes-atores: o de assumir, com inteireza, o risco da entrega cênica, com as vulnerabilidades e aberturas que o teatro exige. É preciso que cada artista em formação esteja disposto a trabalhar numa zona de “despojamento do eu”, como sugeria Grotowski – um lugar onde não há proteção ou repetição meramente formal, mas uma escuta ativa do instante. Isso requer não apenas autoinvestigação, mas um estado de disponibilidade técnica e ética: estar, de fato, a serviço de algo maior.

Imagem: Paulo Lacerda

Esse é, por sinal, um trabalho para a vida inteira de quem escolhe a arte da cena como caminho. Um desafio considerável, porque nem sempre basta querer. É preciso praticar, treinar com rigor e constância para, então, se deslocar: sair das zonas seguras e acessar outras regiões da criação, do corpo, da própria existência. Lugares em que o artista (o ser-em-ofício) se confronta com aquilo que precisa abandonar, e com aquilo que, muitas vezes, ainda não sabe nomear. Trata-se de artesania que pressupõe uma escuta que não se apressa, uma entrega que, como já escreveu Rainer Maria Rilke, “não se realiza de uma vez, mas em longas metamorfoses silenciosas”. É um percurso que nenhum mestre pode fazer pelo outro; cabe a cada um, em seu esforço cotidiano, refinar a própria presença. 

Nesse sentido, talvez possa insurgir, ainda, o desejo (ou o desafio) de investigar outras vias poéticas: narrativas que não partam da densidade histórica, mas da banalidade cotidiana; criações que não convoquem o trauma, mas a alegria imprevisível. Talvez seja preciso, em algum momento, desviar o foco da ferida já reconhecida e buscar outras geografias do esquecimento. Histórias que não gritam, mas que sobrevivem no corpo que dança, no desvio, no riso. Porque a memória também pulsa onde menos se espera.

Imagem: Paulo Lacerda

O aspecto do (in)dizível atravessa o espetáculo. Não se trata apenas daquilo que não se mostra, mas daquilo que, mesmo presente, resiste a se formular inteiramente em palavras. Em diversos momentos, o embate físico entre os corpos, o canto inesperado de um personagem e a relação com elementos cenográficos ocupam o lugar da fala e apontam para a impossibilidade, ou a recusa, de nomear o trauma. Essa poética do (in)dizível, articulada a uma dramaturgia não-linear, pode gerar desconforto ou estranhamento no espectador: há perda de referências, ausência de uma narrativa central, sensação de excesso fragmentário. Entretanto, esse desencaixe pode ser compreendido como procedimento ético e político. Ético, por respeitar a complexidade do real, recusando simplificações fáceis; por confiar na inteligência do espectador, sem subestimar sua sensibilidade e sua capacidade de interpretação. Político, por desestabilizar formas dominantes de narração e representação; por deslocar o olhar, abrindo espaço para vozes silenciadas, memórias subterrâneas e afetos ambíguos.

Imagem: Paulo Lacerda
Imagem: Paulo Lacerda

A cena final carrega, ela mesma, uma poética do limiar. Os atores permanecem em cena, movendo-se em silêncio e penumbra, enquanto o público hesita e se retira da sala sem um aplauso conclusivo. Essa inversão da lógica cênica, em que o espectador se torna, paradoxalmente, agente do desfecho, sugere uma aposta na persistência do acontecimento mesmo após o fim da encenação. Não há cortina, não há encerramento em tom maior. Talvez seja essa, afinal, uma das maiores contribuições do espetáculo: a criação de um espaço em que o visível e o dizível são postos em xeque, e onde algo da vida (em sua opacidade, em sua espessura, em sua densidade) se deixa ver, por um instante. Porque, ao fim e ao cabo, o oposto da vida não é a morte – é o esquecimento.

FICHA TÉCNICA1Nuvens de Chumbo

Direção: Luiz Carlos Garrocho

Direção assistente: Paulo Rocha

Consultoria em dramaturgia de arte sequencial: Hilton Rocha

Consultoria de dramaturgia cênica: Vinícius de Souza

Roteiro e dramaturgia, com participação do elenco: Fabrício Martins

Elenco: Fábio da Mata, Jeanne Angelino, Jesika Torres, Mateus Brant, Rosilene Barbosa e Vanessa Perroni

Cenário e figurino: Luiz Dias

Trilha musical original, técnico e operação de som: João Paulo Prazeres

Iluminação, técnico e operação de luz: Lucas Matias

Assistente de iluminação: Gabriele Araújo

Preparação e criação vocal: Ana Hadad

Sensibilização, criação corporal e coreográfica: Ivan Sodré

Treinamento, jogo e criação corporal: Sitaram Custódio

Ilustrador, quadrinhos e arte: Hilton Rocha 

Produção: Jéssica Azevedo

Cenotécnico: Helvécio Isabel

Operação de projeção: Júlia Teles

Intérprete de Libras: Transmite Libras Comunicação Inclusiva Ltda

 Ao longo deste ensaio crítico, mencionei alguns aspectos da encenação – como a iluminação, a trilha sonora original, o cenário – sem identificar nominalmente os criadores responsáveis por cada elemento. No entanto, reconheço que o espetáculo é resultado de um trabalho coletivo e profundamente entrelaçado, em que cada contribuição artística, técnica e pedagógica teve papel fundamental na realização da obra. – Yan Brumas

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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