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Stanislávski como intercessor do performativo

Quando fiz a prova de seleção para o mestrado – em artes, no campo do teatro – a questão colocada, na hora e sem possibilidades de estudo ou planejamento prévio, solicitava que eu escrevesse sobre as possíveis conexões entre Stanislávski e minha pesquisa.

Voltado para o Teatro do Corpo, Teatro Físico e práticas espaciais, não me parecia, à primeira vista, ter alguma coisa a ver tudo isso com Stanislávski. Se fosse Eugenio Barba ou Grotowski, ou ainda Artaud, certamente seria mais fácil para mim, pois eu os lia continuamente. Porém, esses caminhos e interesses me perpassavam via Arte da Performance e, por estranho que pareça, naquele momento, ali, ao redigir o texto, me veio uma conexão entre esta e o mestre russo.

Os ensinamentos de Stanislávski fizeram parte de minhas leituras em momentos outros, já um pouco distantes dos meus interesses quando fazia a prova. Havia lido os três livros da tradução brasileira – em momentos distintos, mas já não os retomava, pelo menos sistematicamente. Muito até porque, já informado das limitações dessa tradução feita a partir da tradução estadunidense do russo, com limitações sérias apontadas. Gil Amâncio, músico, educador e performador de africanidades, parceiro de estudos, um dia me disse que Eugenio Barba, num encontro com alguns grupos de Teatro em Belo Horizonte, havia dito que traduziram mal Stanislávski, principalmente no primeiro livro – segundo as edições em pauta -equivocaram ao enfatizar o sentimento, enquanto Stanislávski teria antes falado de sensibilidade.

Então, havia um Stanislávski outro que eu não tinha acesso, ao qual Barba e Grotowski sempre se referiam.

No entanto, algo em mim permanecia como um vislumbre: o que me passava por ser uma linha de força a ser evocada e praticada em termos da apropriação do sentido – da força da atuação como apropriação – como não interpretação. Sobre isso, destaco um trecho do livro de Toporkov é preciso. Do ator singular que foi aluno e divulgador do método, na tradução em inglês, Stanislávski in Rehearsal. Ou seja, o chamado “último Stanislávski” – o mestre das ações físicas.

Trata-se do trecho em que Toporkov (São Petersburgo1889/Moscou, 1970), ator importante e singular que foi aluno do mestre russo e divulgador do sistema, cita o ensaio no qual um jovem atuava no papel de uma pessoa mais velha. Toporkov diz que ele tentava partir do papel – queria interpretar um velho, mas Stanislávski lhe disse: “você não tem que interpretar nada”, “você somente necessita ouvir” e “tentar descobrir”, no caso do diálogo em curso, o que a personagem do parceiro queria (tradução livre do inglês). E então, pedia, reaja a isso Depois que o ator reagia com as forças do vivo – do performativo, do que estava emergindo no campo da percepção naquele momento, – Stanislávski diz: “agora você pode exa

Arte do vivo. Numa dobra de linguagem – a da cena. Que é arte ao vivo. É aí que entra a Arte da Performance. Os artistas visuais, que a praticaram nas vanguardas experimentais dos anos de 1950 – 1960 -, percebiam no teatro o que o próprio teatro, naqueles idos predominantemente dramáticos (em não podia admitir: a força do performativo no aqui e agora do convívio cênico – para lembrar com Jorge Dubatti).

A Arte da Performance fez da obra um acontecimento – entre pessoas, num lugar e num tempo.

Não se trata, porém, de dizer que Stanislávski influenciou a Performance. Ou coisa próxima a isso. Não é um nexo causal que faço. Ma sim um movimento. Vejo ressonâncias, conexões e confluências inesperadas, para pensar com Deleuze a relação entre heterogêneos. Não que distam, simplesmente, mas que não sendo a mesma coisa, se potencializam mutuamente.

Pois que teatro é vida, é jogo, é linguagem. E isso inclue a presença física mutuamente compartilhada, de artistas e testemunhas (espectadores). O que me parece fácil entender intelectualmente. No entanto, se faz desejável e necessário viver o risco do traço e do compasso das forças disruptivas e a experiência do acontecimento cênico-performativo como duração. Aquilo que é o real do tempo real. Como quando, a título de analogia, um corpo e outro corpo se encontram numa relação presencial num lugar e num tempo– e se quiser, a partir dessa ontologia do sensível compartilhado, com as conexões de telepresença.

Esse aspecto, sobretudo, tomou-me a cabeça, a letra e o corpo. Stanislávski, intuía a partir de leituras bem limitadas, mas de atenções em focalizações cada vez mais intensivas, traduzia isso para mim.

Nesse aspeto, as leituras de Grotowski e Eugenio Barba são importantes. Primeiro porque retomam Stanislávski, cada um na sua perspectiva própria do trabalho do ator sobre si. Antes d estudo por caminharem fora das determinações da assimilação estadunidense do sistema – essa tentativa de obter uma técnica de interpretação dramática – com as instrumentalizações resultantes. Depois, porque, aos seus modos singulares, esses pedagogos elucidam a ação poética do performativo. E não é, portanto, o naturalismo do diretor Stanislávski que se busca, mas as potências performativas, que não são domesticadas ou limitadas por qualquer tipo de gênero. Grotowski fala, por exemplo, da ação como momento que excede as condições habituais para se expor à experiência-limite. Barba fala dessa poética como pensamento em ato – que igualmente extrapola o agir cotidiano.

Cada vez mais fui me voltando para esse que foi um dos intercessores anto de Grotowski quanto Barba, que é Stanislávski. Cito aqui alguns dos livros que comecei a ler recentemente. O livro de Diego Moschokovich, O Último Stanislávski em Ação – ensaios para um novo método de trabalho (Perspectiva, 2021) e Stanislávski e o Trabalho do Ator Sobre Si mesmo, de Michele Almeida Zaltron (Perspectiva, 2021). Acrescento ainda Stanislávski e o Yoga, de Serguei Tcherkássk, com tradução de Diego Moschkovich (É Realizações Editora).

Michele Almeida Zaltron explicita dois processos criativos que se distinguem e se complementam no sistema de Stanislávski: a) perejivánie – que pode ser vista, seguindo o dicionário citado pela autora como um “estado da alma que se expressa na presença de sensações e impressões intensas experimentadas por alguém; b) vaploschénie, que se entende por encarnação, personificação, mas também metamorfose.

Entertanto, Stanislávski como intercessor performativo não se delimita pela Arte da Performance. Já que o próprio performativo, como nós o pensamos aqui, igualmente não se prende a essa arte. Performativo como chamamento das forças a si – como me sugeriu, numa conversa, a pesquisadora cubana radicada no México, Ileana Diéguez Caballero.

Naquele momento em que redigia a prova para concorrer ao mestrado, esse possível me veio, então, à mente: Stanislávski e a performance. Não somente algo daquela hora. Mas que vem se manifestando e me inquirindo no meu caminho. Com Stanislávski como importante intercessor.

Referências

  • Toporkov, Vasily Osipovich. Stanislavski in Rehearsal. New York, Routledge, 1988.
  • Luiz Calos Garrocho: Performance sem testemunha? – discussão sobre as linhas de performatividade e teatralidade. Site Duração & Diferença – Rede Zero. Em colaboração com Leandro Silva Acácio.

Por Luiz Carlos Garrocho

Professor, pesquisador, diretor de teatro e filósofo.

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